“Dia histórico”. Foi como a acreana Rubby Rodrigues descreveu a última segunda-feira,14, em que ela, mulher trans, palestrou sobre abordagem policial à população LGBTQIA+ para 288 alunos da turma de formação de soldados da Polícia Militar do Acre (PMAC). A aula faz parte de uma série de recomendações que a Secretaria Estadual de Segurança Pública recebeu em julho de 2021.
Os principais pontos tratados na oficina foram sobre as diferenças entre sexo, gênero e identidade de gênero; garantia legal do uso do nome social; quais termos são ultrapassados e que não devem mais fazer parte do vocabulário; quem pode fazer busca pessoal em pessoas trans; atualização sobre a criminalização da LGBTfobia como forma de racismo. Rubby, que é funcionária do Ministério Público do Acre (MPAC), uniu informações técnicas com a experiência própria, para instruir e sensibilizar os futuros profissionais da segurança.
“Desde a questão de explicar a sigla LGBTQIA+, até falar das minhas experiências de vida, da qual eu, como pessoa trans, passo no meu dia a dia, e também sobre o acolhimento. Falei porque é necessário ter acolhimento, sobre o que acontece na vida de uma pessoa LGBTQIA+, no dia a dia, e também sobre os crimes, porque a LGBTfobia agora é crime, tudo foi repassado a eles”, explica.
A palestra pode ser vista como o início de uma mudança na realidade de um estado tão homofóbico como o Acre, que registrou apenas 10 casos de homofobia de 2019 a 2021, mas é palco constante de tal crime. No início deste mês, um vídeo registrou falas transfóbicas de um policial militar a duas jovens trans, na cidade de Cruzeiro do Sul. Em junho do ano passado, o Centro de Acolhimento à Vítima (CAV) constatou ato de transfobia cometido por um escrivão da Polícia Civil ao atender a cabeleireira Jullyana Alves.
Este cenário também serviu de base para que o Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), Defensoria Pública da União e Defensoria Pública do Estado do Acre fizessem um documento com uma série de recomendações à Segurança Pública do Estado.
No documento, os órgãos elencam uma série de questões que comprovam a “extrema vulnerabilidade” da população LGBTQIA+ no Brasil, assim como a falta de políticas públicas que colaborem para tal segurança. Como o dado de um relatório do Grupo Gay da Bahia, que registrou 237 mortes violentas (por homicídio ou suicídio), decorrentes de discriminação da comunidade LGBTQIA+ no Brasil, em 2020. Para os órgãos, essas medidas servem de instrução para combater a intolerância e a desinformação por parte dos profissionais da segurança pública.
Segundo a Diretoria de Ensino o Curso de Formação de Soldados da PM, a ideia é capacitar os policiais em formação sobre abordagem às vítimas, o registro de ocorrências e a tipificação penal das condutas praticadas contra ou pela comunidade LGBTQIA+. “Eu me dispus a tirar dúvidas deles também e acredito que foi bem satisfatório a eles. Para mim, foi muito emocionante, inclusive, não consegui segurar a emoção, no final da palestra. É uma sensação de que a missão está dando certo e que as coisas realmente podem acontecer”, conta Rubby.
Sobre o caso de transfobia
No dia 8 de junho de 2021, Jullyana Correia, mulher trans, foi abordada por um funcionário da Prefeitura de Rio Branco após utilizar o banheiro feminino do prédio. O homem a “instruiu” a utilizar o banheiro de deficientes, da próxima vez, para “não causar constrangimentos”. A situação de preconceito parecia ter acabado ali, mas, no dia seguinte, quando decidiu registra um Boletim de Ocorrência, ela foi vítima de transfobia mais uma vez. Acompanhada da equipe do CAV, ela ouviu do escrivão de polícia que não era possível se referir a Jullyana pelo pronome feminino no documento.
“Ele disse que o sistema não alegava, não tinha forma de mudar meu gênero para o feminino, dizendo que só tinha como colocar no masculino. Mesmo a funcionária do MP falando para ele que não existia a hipótese de uma figura feminina ser tratada como masculina, sendo que ela já está fazendo um depoimento de uma situação em que ela foi chamada pelo masculino, e ele queria continuar o depoimento na figura masculina. Ao invés dele atribuir o que falávamos, ele meio que debochou da situação. Ficou uma situação desconfortável”, relata Jullyana.
A vítima conta que foi preciso chamar outro profissional, neste caso, uma escrivã para que o boletim fosse registrado corretamente. “Foi uma situação muito constrangedora, ficaram todos desconfortáveis. A própria polícia sem um pingo de conhecimento ético moral não tratou a gente no feminino. O escrivão, ao invés de buscar conhecimento, disse que não existia nenhuma hipótese de mudar, que o sistema não estava atualizado para esse tipo de coisa”, recorda.
A partir desse episódio , o MPAC, em diálogo com o MPF, criou um relatório e realizaram o documento de recomendação.
Sobre as recomendações à Segurança do Estado
O texto de recomendação utiliza dados do Grupo Gay da Bahia que constata a subnotificação dos casos de violência contra a comunidade. No Acre, de 2019 até outubro de 2021, apenas 10 casos de homofobia foram registrados, e tanto a Polícia Civil do Estado quanto o MPAC constataram que tal número não condiz com a realidade. Dessa forma, o documento considera que tal subnotificação pode resultar de “despreparo e inexperiência dos órgãos de segurança pública, especialmente em relação ao treinamento e capacitação de seus agentes no atendimento de pessoas LGBTQIA+”, destacam.
Por fim, os órgãos recomendaram a promoção de treinamentos e capacitações regulares em relação à temática LGBTQIA+ para policiais civis, militares, penais e bombeiros; a inclusão de dados relativos as pessoas de tal comunidade nos registros policiais como orientação sexual, identidade de gênero e nome social.
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