Melissa nao tinha marreta, martelo, ou nada que servisse – pelo menos pensando assim, de pronto – pra quebrar parede. Mas desde quando gesso é parede? Ela pensou meio feliz, já que conseguiria seguir com a tarefa a que se propôs com o que quer que fosse. Pra um segundo depois, pensar meio triste: era só gesso mesmo que dividia a vida delas da dos vizinhos. Uma camada tão fina e frágil, não é?
Na cabeça, e só na cabeça mesmo, já que seguia deitada no chão, passou a revisar cada item de cada gaveta dos 30m2 do apartamento. Não eram muitas gavetas, nem muitos itens. Saiu fugida do último endereço e trouxe somente o que teve tempo de colocar no carro de Zé Celso. Foi a partir daquele dia que passou a considerá-lo um amigo, alguém com quem podia contar. Sentiu uma pontada de culpa por fazer, justo ele, dobrar o turno por uma besteira dessas.
Levantou num pulo, já com o telefone na mão e, antes mesmo de desligar a lanterna, apertou o nome de Guilherme na agenda. Disse, sem se preocupar com a incoerência da mensagem, que, do nada, estava melhor, que não precisava ligar pra ninguém não, chego em meia horinha. E saiu de casa, ainda com o cabelo pra cima. Só se deu conta do avental no segundo ponto de ônibus. Espantada com a falta de sentido da cena – ela de chinelo, calça de moletom e flanela no bolso do avental, sem banho, sem óculos, sem maquiagem e com o crachá da gráfica pendurado no pescoço – apertou o botão e desceu na mesma avenida em que morava.
Era também fininha a camada que separava a Melissa de hoje cedo, que tinha planos, ordem para realizar cada um deles, que tinha controle da própria vida, dessa que se arrepiou quando encostou um pedacinho do pé na calçada molhada, sabe-se lá do quê, da Cardel Arco Verde. Antes de seguir descendo a rua, centralizou o corpo nas havaianas de faxina e retomou, um pouquinho pelo menos, a direção dos próximos passos. Vai voltar pra casa, tomar um banho de cinco minutos e chegar apresentável na gráfica. Melhor atrasar mais um hora do que assustar Guilherme. Ela precisa do trabalho e ele confia em pouca gente para operar a guilhotina.
Mesmo que o salário e a vida real tivessem voltado a ser guias, o pedacinho de dinheiro no vão entre o apartamento 81, o dela, e o 82, o dos vizinhos, deu ordem para que Melissa descesse mais uma quadra e entrasse na Precolândia da Cunha Gago atrás de um martelo. Chegaria na gráfica em uma hora e dez. Mas amanhã, almoça em casa. Nem que sobrem vinte minutinhos entre ir e voltar, ela já vai ter ferramenta pra quebrar como se deve uma parede. O da tramontina é R$24,79, senhora. Fez as contas, dava um pouquinho mais de cinco dólares. Vou levar. Débito ou crédito?