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Sonhos que pairam acima da revoada

       Sonhos não têm prazo de validade. Não têm compromisso com a verdade. Sonhos não têm idade. Talvez surjam da ansiedade. Às vezes são veleidades. Sonhos não envelhecem. Muitos deles prevalecem. Outros rejuvenescem. Alguns deles sequer nos obedecem… E sonhar é tão bom, de madrugada, voando acima do casario, por entre as nuvens, com uma folha de mangueira colada pelo suor à altura do umbigo, como se aquilo fosse um par de asas. Depois, bem depois, basta acordar, e pronto. Estamos, pois, refeitos e, então, já é o tempo da correria para a escola, para a objetividade da vida, para o trabalho, para os filhos, para os amigos, para o além. É o ciclo que se cumpre.

            Bom é ver que o menino sonhador – hoje ultrapassado da sexta década – foi buscar sonhos muito antigos, ainda do século anterior, e até os comparou aos sonhos de quem sonha hoje uns sonhos fresquinhos, tirados agorinha da caixinha verde da memória, novinhos em folha. Os sonhos de agora não são sonhos velhos como toda essa vastidão de quinquilharias do apartamento que se tornou obsoleto porque está quase inabitado. Os sonhos de hoje são miragens que deixaram para trás a era do gelo, o império romano, o muro de Berlim, o advento da cibernética, e já nos embarca num universo virtual, o famigerado e doido metaverso… E pensar que um dia alguém deverá estar exatamente num lugar para onde não foi. É temeroso demais. É louco. É a pós-modernidade que já nos esqueceu aqui e agora. Foi-se. Perdemos o trem bala da história nossa que já não é nossa.

            Na estrada ampla mas cheia de meias crateras disfarçadas com um piche cinzento que revela péssima qualidade, ele segue devagar ao volante do bólido japonês denominado híbrido. O animal de quatro rodas quase levanta voo, porque está escrito no painel que ele pode chegar a duzentos e sessenta quilômetros horários, mas o poeta sonhador não passa dos setenta e poucos. A idade já não permite ir a mais do que isso.

            Há dois passageiros no carro. São os filhos gêmeos parrudos de metro e oitenta, que ele teve já em meia idade, com quase cinquenta voltas. Agora estão aos dezoito e se iniciam nas suas engenharias respectivas. (Por que é que todos querem ser engenheiros?)

            Ele pensa nas tantas coisas boas que lhe têm ocorrido e é muitíssimo grato a Deus pela sequência de êxitos que tem sido a sua vida, desde os tempos em que escapou do quebranto maldito que quase lhe ceifou a vida ainda na primeira infância. Agradece pelas vitórias dos quatro filhos, porque são vitórias suas também. A gratidão antecipada salta do pensamento porque tem certeza que muita coisa boa ainda vai lhe acontecer, como também vai acontecer, principalmente, aos filhos que ainda principiam as suas carreiras.

            A emoção teima em pular para fora dos olhos. O menino anotador de tudo agora é um homem maduro. Diria passado na casca do alho. Viajado. Rodado. Fuçado… Vêm lágrimas. Os filhos estão eufóricos cada um na sua medida. Um será ambientalista e o outro está entrando no ramo dos sistemas de informação.  Eles têm planos que são partilhados com o pai que os incentiva. Afinal, trata-se de um velho professor de português.

            O menino e anjo e homem maduro recorda feliz que tudo aconteceu com ele da mesma forma que hoje acontece aos filhos. Ele sempre disse que uma escola de qualidade deve cobrar, com seriedade, leitura e interpretação de textos e da vida. Fora a parte das ciências exatas, que também deve ser levada a sério e cobrada nos detalhes. Em casa, além da educação doméstica, deve-se cobrar, exigentemente, as tarefas que os filhos trazem para casa. E tudo vai dando certo, desde a época em que a mãe do poeta fazia cobranças e ameaças se este não tirasse notas maiores que sete. Hoje já não é preciso ir a extremos, mas o sucesso acontece, porque também os pais o buscam em acordo com os filhos e filhas.

            A idade avançou. Aquele que em criança e anjo era chamado Zé das Arreatas percorreu todos os estágios, conforme um dia lhe disse o velho pároco. Planejou, estudou, executou, procriou e amadureceu não a olhos tão vistos, porque tem sessenta e cinco com cara de trinta.

            Lambe o rosto, de par com o vento gerado pela velocidade, lembranças da filha amada que sonha e executa projetos tão grandiosos, como gigantescos são os planos dele para os filhos todos, independentemente dos nomes das mães. Ela estuda uma engenharia genética que busca melhorar o ser humano e torná-lo ainda melhor que o próprio Deus o fez. Os engenheiros biotecnológicos brincam de ser assessores do Todo Poderoso, e o anotador fica estupefato.  Uma doidice.

            Importa, sim, o prevalecente dê-ene-á. Todos deverão trilhar caminhos parecidos aos do pai, que, como um césar amazônico, veio, viu e venceu. Segundo ele, os quatro filhos são a prova exata e inequívoca da existência de Deus. São presentes do Pai da Criação. Ele se emociona toda vez (dez vezes ao dia), em que lembra que os quatro estão vinculados a universidades públicas federais, seguindo o mesmo trajeto que ele fez desde a adolescência pobre na cidade natal, até um curso de pós-graduação em nível de doutorado na melhor universidade do país. Lágrimas, muitas e densas e copiosas lágrimas.

            Lembra que o outro – o mais velho – está prestes a alçar voos para o velho mundo em busca de novos ares para os sistemas de transmissão da sua engenharia que aprimora a eletricidade. Imensas são as possibilidades de ele radicar-se em algum país de além-mar. Há talento, há esforço, há ousadia e há, sobretudo, um Deus que ilumina a todos. É que ele reza muito e pede ao Todo Poderoso pelo futuro dos seus três cavalheiros orgulhosos e uma gentil e meiga e bela dama de honra.

            Eis, então, que surge à frente o belíssimo pórtico da universidade. Quanta singeleza e modernidade aliadas ao bom gosto. Assaltam, agora, lembranças vetustas. Um ou mil sonhos sonhados há muito tempo, quando ele leu quase todos os livros da biblioteca do colégio, ou, mais tarde, quando o campus da universidade contava com apenas dois prédios. Hoje são mais de oitenta. Lembranças da chegada à universidade onde ele fez os famosos altos estudos. Tudo emociona a essas alturas da vida.

            Naquela época, os filhos não existiam nem nos sonhos. O anotador de tudo não era vocacionado para certos compromissos até porque, aos vinte e seis anos, ele se considerava um pré-adolescente imberbe sem condições de ficar longe das saias da mãezinha querida, das ruas e dos botecos, notadamente, em fins de semana. Ele pensava como o Quintana que, indagado sobre a sua solteirice aos oitenta anos, dizia que preferia deixar dezenas de mulheres esperançosas do que uma só desiludida. O poeta gaúcho é genial na sua imortalidade de grande apreciador das mais belas frases de efeito relativas ao amor.

            Há um moderado corre-corre no campus. Os novos alunos não sabem para onde se dirigir, dado o tamanho da área e o número de prédios. Esses tais calouros são aqui denominados passarinhos que, mesmo agorinha, quase aprenderam a voar. Uns vêm de uma periferia distante, na subida dos Andes. Outros vêm de uma periferia mais próxima e também pobre, mas todos estão ávidos por futuros brilhantes que lhes acontecerão, sim, porque Deus prefere assim.

            Os sonhos pairam sobre as cabeças dessas jovens criaturas filhas de pais sem arrimo. Os calouros, em sua grande maioria, são como os meninos dos esportes: sonham um dia poder dar aos seus uma casinha melhor, uma vida mais digna – no nosso caso específico – à custa de um emprego que a universidade poderá, muito provavelmente, em quatro ou cinco anos, lhes outorgar.

            Sigam sempre em frente. E que a Divina Providência ilumine e proteja as suas vidas do início ao fim. Beijo.

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Cláudio Porfiro: Cláudio Motta-Porfiro é romancista, cronista, poeta e palestrante. Membro da Academia Acreana de Letras. Email: claudioxapuri@hotmail.com