Milene assistiu no dia anterior a um desses debates em vídeo, dos que aconteceram aos montes no período mais severo da pandemia. Discussão profissional de uma profissão que não é a sua. Desses muito chatos e longos, desses de um assunto que passa por cima da cabeça e, mais do que isso, interessam em nada ou em muito muito pouco. E o muito muito pouco está aqui para dizer que no vídeo, um dos debatedores era José. José em muito muito muito lhe interessa, ainda mais depois de ontem.
Se conhecem há anos, mais de uma década, “ já que a vida insiste em ser narrada em números hoje em dia” ela diz. Um se conhecem meio relativo. Conhecem amigos de amigos de amigos. Ouviram falar um do outro aqui e ali, encontraram em algumas ocasiões, trocaram ois, cada um a viver a própria vida. Uma década também meio relativa. Pelo que ela vai contando, são no mínimo três. Mas desde que encostou nos 50, anda a encolher o tempo, ela disse ainda nos primeiros minutos de nosso encontro.
No início do ano, José foi mencionado em uma banho de piscina, veja bem, e Milene ouviu o nome um pouquinho mais doce do que costumava ouvir. Procurou o moço nas redes, perfil fechado. Pediu pra seguir. Mas não deu um minuto completo pra ele aceitar e seguir de volta. Conversa vai, conversa vem, sabe como é.
Pois passaram, Milene e José, a se encontrar todo dia. Ela naquele reconhecimento, tentando juntar as histórias que ouvia às que tem vivido com ele. E ele… Bem, ele não sabemos já que é a voz de Milene que nos conta essa história. O que sabemos dele é o vídeo. Milene (que não se chama Milene, e autorizou a publicação deste texto) pôde experimentar um “sem filtro de flerte”, um “sem filtro de amigos”, um “sem filtro de nervosismo de presença”, enquanto ouvia o moço de jaleco, sentado diante da biblioteca de casa, falar durante horas sobre a estrutura química de sabe-se lá o quê. Me disse que foi ali que arrematou o apaixonamento que se desenhava desde o primeiro contato.
Um “sem filtro” é possivel? Perguntei. Ela se despediu, do que era a sua entrevista, nosso primeiro encontro. E no dia do segundo, escreveu dizendo que como não havia mais José, também não havia mais demanda de análise. Lembrei disso porque sexta-feira, trouxe pra casa o filtro de barro que tenho no consultório – o filtro dos analisandos, como costumo me referir a ele. Queria lavá-lo, entender se precisava de alguma manutenção. Hoje, na pressa do início da semana, esqueci de trazê-lo de volta. Hoje, com sede e um tantinho de raiva pelo esquecimento, recebi a ligação de Milene que quer voltar. Achei tão simbólico. Minha aposta é a de que agora, será possível se dar conta de que os debate, a matemática, os 50, a doçura ou azedume de um nome, os filtros os flertes, o nervosismo e os arrematamentos são seus e não de José, ou outros Josés que possam surgir. Assim como é minha a água de que sinto falta enquanto escrevo. Olhar para dentro do filtro. Bora? Boa semana, queridos.