Quando criança, eu pensava que o povo brasileiro deveria ser mais patriótico. Via os filmes americanos na Sessão da Tarde e achava muito legal eles chutarem a bandeira deles em tudo, hasteadas nos quintais, coladas nas roupas. Adorava o clima de Copa do Mundo. Era o momento de fazer vaquinha com os vizinhos, comprar umas latas de tinta verde e amarela e sair pintando os muros e a rua. Nos Jogos Olímpicos me emocionava com toda medalha de ouro, seguida de pódio e hino.
Já adulta, Ayrton Senna virou um caso à parte. Nem dormia de sábado para domingo, tamanha expectativa de ouvir aquela música e o Galvão Bueno berrando, porque o Senna era o campeão e ganhava todas as corridas. Até aquela manhã horrivelmente triste.
Ali já começou a me enjoar um pouco essas coisas de hino. Bom, mesmo assim, segui acreditando que patriotismo poderia ser algo bom. Na faculdade, estudei sobre o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha. Li todos os textos extras de livros didáticos. Entendi que esse amor à própria pátria, quando extremo, virava ódio à pátria dos outros. Então reformulei o pensamento para ainda achar o patriotismo legal, desde que não fosse demais da conta.
Passei por mil mudanças de mentalidade. Só quando sentei, com vários professores de História, num curso de pós-graduação, é que fui entender o que era patriotismo e suas implicações. De modo que mesmo antes da ascensão do Bolsonarismo, já tinha horror de patriota.
Ontem à noite li um texto do George Orwell e todas essas lembranças me vieram. Ele dizia que só o patriotismo (“lealdade nacional”) pode fazer com que um homem de boa índole mate um desconhecido que nunca lhe fez mal algum. E não perca uma noite de sono por isso porque estava “servindo ao país”. O patriotismo exacerbado (expresso na ideia de que seu pais estaria “acima de todos”) existe para justificar assassinatos. Nenhum outro sentimento faz com que um grande número de pessoas concorde em matar outras. Nem mesmo o sentimento religioso. Até porque, se for cristianismo, por exemplo, acontece aquela contradição com a mensagem do próprio Cristo que era contrário a matar. Então para fazer com que uma massa de pessoas aceite que uma liderança lhes imponha coisas inaceitáveis é preciso essa fantasmagoria do patriotismo sem limites.
Patriotas bem doutrinados concordam com o assassinato de quem for considerado “inimigo da pátria”, sejam estrangeiros ou não. Por isso é tão comum em nosso país o combo “patriota” + “quer a volta de uma ditadura”. Patriotismo não é gostar da bandeira nacional. É acreditar que ela simboliza um povo escolhido, especial, melhor do que os outros, predestinado, uma nação “acima de tudo”. Na melhor das hipóteses, isso se traduz em uma atitude ultrapassada diante da vida.
Seja do povo lá nos EUA idolatrando sua própria bandeira e sua ideia de que seriam uma nação-modelo. Seja parte de um povo medonho de cá, espumando e se dizendo “patriota”, vestindo a péssima combinação das cores verde e amarelo. Ser cafona é o de menos. Os movimentos de inflar o patriotismo no fim das contas buscam que as pessoas “de bem” se tornem capazes de tudo, inclusive de autorizar o assassinato de desconhecidos. Sem que percam uma noite de sono por isso.
Beth Passos
Jornalista