É domingo, vejo da varanda uma menina de uns 8, no máximo, super compenetrada. Compenetrada do tipo dentinhos de cima mordendo o lábio de baixo. Ela veste um casaco edredom, jeans e botas. Tem os cabelos presos em duas tranças. Está na bicicleta sem rodinhas. Parece a primeira vez. O pai, teórico, tenta explicar, com gestos de comissário de bordo, que faça assim ou assado. A mãe espera paciente, costas dobradas, enquanto segura o selim atrás da dupla. A tarefa tem ares de importância para os três. Talvez hoje seja um dia para não esquecer.
É domingo, a irmã mais nova joga videogame no sofá. A mais velha, procura no Mercado Livre um controle para substituir o seu, quebrado. Acha um que chegaria na quarta, mas o desejo é de domingo. Poderiam revezar as partidas, mas o desejo é de ao mesmo tempo. A mais velha convida a mais nova para um brigadeiro e uma série. Eu desconfio que a outra não aceitará. Ela diz sim e larga o controle. Daqui de onde as vejo, formam o conjunto mais bonito do mundo. Talvez hoje seja um dia para não esquecer.
É domingo, abro o computador para checar o resultado da Lotofácil da independência. Enquanto a máquina pensa, calculo o que fazer com os 160 milhões que vi brilhar no cartaz da lotérica. Vejo que o prêmio saiu para 79 pessoas, são portanto pouco mais de dois milhões pra cada. Penso que quase oitenta dormirão aliviados hoje. Me concentro pra imaginar a cara de cada um deles, vejo a carinha dos meus, amo todos, conhecidos e desconhecidos. Desligo o computador. Talvez hoje seja um dia para não esquecer.
É domingo, os gatos estão abraçados no encosto do sofá. O da manchinha no nariz lambe o pescoço do da manchinha na pata. O da manchinha na pata mexe a cabeça lentinho, aproveita cada lambida, abraça um pouco mais apertado o da manchinha no nariz. Fecham os olhos fazendo durar os minutos de banho. As crianças riem da série interrompendo a leveza dos dois, ambos saltam do sofá. Um vai pra rede e o outro para o móvel da tv, derruba o controle do videogame que ainda funcionava, mas não leva bronca de ninguém. Talvez hoje seja um dia para não esquecer.
É domingo, e eu espero que a menina de tranças tenha conquistado alguns metros sem as rodinhas, que o pai comissário de bordo compre um relaxante muscular para a mãe, que as irmãs contem sempre com a presença uma da outra, que os gatos sigam por perto e que eu lembre que melhor do que qualquer lotofácil são os dias como esse.