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Quase

Li um texto da Cris Lisboa que começava assim: Queria te contar um sonho, mas acordei atrasada. Foi justinho isso hoje, a parte do querer e a do sonho. E eu diria, que nem ela, bem imitona e fã. Mas só se fosse verdade. Aqui, nesse texto, ouvi o despertador às 6h e não voltei a dormir depois do primeiro toque. Ainda assim fiquei mais uma hora de relógio na cama. Eu tava tão molinha. É que esfriou, e se esfria, me faço o carinho de tirar o cobertor de Garanhuns do maleiro. Meu cobertor de infância, sabe? Tu entende a dificuldade de deitar criança em Garanhuns e levantar aos 44 em São Paulo?

Pois pronto, faltavam vinte minutos para estar banho tomado e escuta atenta no trabalho quando encostei as meias na cerâmica gelada da cozinha para dar o dia por começado. Eu poderia dizer que deu tempo, já que tu não tá vendo daí aquele pedacinho do meu cabelo que acorda para cima e para todos os lados, menos o certo. Mas é segunda ainda, cedo demais para mentir. Deu nada. Comi o mamão de pé e queimei o dedinho na chaleira, embora o café tenha ficado ótimo. Repeti a roupa de ontem e dei bom dia ao porteiro do consultório descabelada e com vincos de travesseiro na bochecha.

Se tivesse te mandado um áudio, do elevador mesmo, teria dado conta de descrever o sonho de cabo a rabo, como gosta de me dizer o analisando das 8h. Mas 8h já, sabe? Tarde demais para verdades por áudio. Entre ele e o das 9h, sobraram dez minutos. Abri as cortinas pra deixar entrar ao menos uma nesguinha de sol, te escreveria ali da janela, escrevo melhor com luz e calor. Não tinha sol. Ainda assim o moço do predinho da Barão de Tatuí pendurava os lençóis no varal da laje. Ele sabe, não vai secar. A cidade está úmida e escura, mas é setembro, mês de promessa de luz e calor. Esses dias te contei do meu gosto por acreditar nas promessas do dia, meu gosto pelos dias, tu lembra? O moço da Barão de Tatuí é como eu , acredita que o vento empoeirado de Santa Cecília vai resolver os lençóis, sem sequer tirar o cheiro do amaciante. Por ele, me prometi que lavo os meus assim que chegar em casa, só pra lembrar a setembro que sigo acreditando nele.

Aí chegou a próxima, e chegará  outro e outro. Lá pela hora do almoço, esquecerei do cenário do sonho. Umas duas da tarde, passarão voando, como lençóis no varal, trama e personagens. Umas quatro, os cheiros e os sons. Estará quase escuro quando precisarei colocar os óculos, meus olhos cada vez mais cansados, cada dia mais cedo. Pode ser que aquele embaçadinho da lente, no canto superior esquerdo, me lembre a névoa do sonho. Pode ser que o incômodo curioso da madrugada me traga de volta a falta de nitidez das 6h da manhã.  Umas 10h, eu já cansada do dia, vou te ligar e dizer que tinha uma coisa tão linda pra te contar, mas que não faço ideia do que era.

E se tu disser “então faz assim, sonha comigo e me conta por lá”, pode ser que me venha o sonho inteiro, na mesma hora, e eu contei por aqui mesmo. Ou pode ser que eu fique com essa ideia e quase consiga seguir o plano, que ganhe um sonho bônus, já pensasse? Mas ‘pode ser’ não faz verão, faz? E depois, ‘quase’ é tão pouquinho. E ‘e se’? ‘E se’ é o mesmo que coisa nenhuma. Vou dizer nada não. Deixa tu sonhar. Vai que a tua memória é melhor que a minha.

Roberta D'Albuquerque: Roberta D'Albuquerque é psicanalista. Email: robertadalbuquerque@gmail.com