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Por que as palavras mudam de sentido no correr do tempo?

No seu percurso histórico, as palavras adquirem  novos sentidos e estabelecem novas relações semânticas umas com as outras. Às vezes, o sentido tanto se altera que podem partir, por exemplo, de um valor axiológico positivo para um valor axiológico negativo, ou vice-versa, e as conotações de caráter puramente periférico passam a ser nucleares.

Nosso objetivo neste trabalho é mostrar que as mudanças semânticas não afetam apenas diacronicamente os itens lexicais. Os fenômenos referidos acontecem também na sincronia. Vale ressaltar, como Bréal (1992), que, em determinados contextos, vale a restrição ou a ampliação de sentidos.

As alterações semânticas decorrem de múltiplos fatores, estudados exaustivamente por Bréal (1992), como a restrição e a ampliação de sentido, a metáfora, o espessamento de sentido, a polissemia. Bréal recusava-se a apresentar a analogia como uma causa e muito menos como uma força cega. Em consonância com Bréal, muito bem pondera Faraco (1992, p. 45), ao afirmar que,

 

[…] nenhuma mudança é por si só necessária: ela encontra seu caldo de possibilidade na pluralidade de formas linguísticas existentes no social e vai ocorrer ou não na dependência de um intricado (e ainda pouco esclarecido) processo de preferências sociais contingentes.

 

Vejam-se, nesse breve texto, a ampliação ou mudança de sentido de três palavras: Destino, Fortuna e Sina. São três palavras  que evoluíram de sentido no curso do tempo. É claro que existem outras tantas, mas, aqui, abordam-se essas três para mostrar como as palavras evoluem e mudam de sentido. Isso é um fenômeno semântico que acontece em todas as línguas faladas.

A palavra “destino” deriva do verbo destinare. Contém dois elementos: ‘de’, que significa movimento a partir de certo ponto, stinare, que significa ‘fixar’. Destinare significa partir de um ponto fixo, da raiz stano ‘resistir’. O significado original tem o traço de volitividade: ‘prender’, ‘segurar’, ‘firmar’, ‘estar fixado’. Já se delineava, através do último sentido, aquele que viria a ser o significado em vernáculo. ‘Destinar’ é um curso a partir de um ponto. Na linguagem do arco e flecha, ‘destinar’ significava ‘fazer pontaria’ e ‘destino’ se referia ao alvo. Portanto, ‘destino’ primeiro significou ‘meta’ e depois se transformou em ‘fado’, ou seja, uma força imutável que determina o que sucederá no futuro.

Como se nota, através de contínuas migrações de meio social e uso, o significado original, por metáfora, passou a significar ‘sucessão de fatos que podem ou não ocorrer’, como nesses exemplos: (… ) mas se o ‘destino’ insistir em nos separar/danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas (Chico Buarque, Dueto).  A gente quer ter voz ativa/no nosso ‘destino’ mandar/mas eis que chega a roda viva/e carrega o ‘destino’ pra lá (Chico Buarque, Roda Vida). (39) nunca acreditei na ilusão de ter você pra mim/Me atormenta a previsão do nosso ‘destino’ (Los Hermanos, Anna Júlia).

A palavra“fortuna”, na origem, designava a ‘sorte (boa ou má)’. Aurélio registra diversas acepções de ‘fortuna’: ‘casualidade, destino, ventura’. No entanto, se especializou com conotação axiológica positiva, como provam os derivados. Segundo Faria (1994), especializou-se como ‘boa sorte’ ainda em latim, nas cartas de Cícero e daí, no plural, significava ‘dons da fortuna, riqueza’. Tem-se, na literatura, os exemplos: Com aqueles simples conhecimentos – ler, escrever e contar – entrou na vida, e não foram necessários outros para que lhe sorrisse a ‘fortuna’ (Artur Azevedo, Na Horta); Disseram que está no Norte/Toda ‘fortuna’ e sorte/que o mundo tem a oferecer/Para acabar de uma vez/com toda minha pobreza (Kid Abelha, Cantar em Inglês). Mesmo nos derivados ‘infortúnio’ e ‘afortunado’, a raiz ‘fortuna’ tem conotação positiva. São exemplos: Foram meses de ‘infortúnio’/Desse mal quase faleço (Beth Carvalho, Novo Endereço); Não faltavam ao soldado feitos que lhe aumentassem o prestígio de pessoa bem conformada, sem vícios que lhe dessem o realce de um ‘afortunado’ (Domingos Olympio, Luzia Homem); Com seu nariz furando o vento/Com um certo ar de autoridade/Eu fico louco, louco de saudade/Sou um cara ‘afortunado’/perto de ti eu sou um poço de sensibilidade (Ira! Poço de Sensibilidade).

A palavra ‘Sina’, cujo sentido original era ‘sinais’, advém do léxico do Zodíaco. Deriva de um plural signa relacionado ao singular signum. Etimologicamente, ‘signa’ é uma marca: vem do indo-europeu secnos,ligado a secare ‘cortar, distinguir’. Para Houaiss (2001), significa: “fatalidade a que supostamente tudo no mundo está sujeito; destino, sorte, fado”. É esse o sentido no trecho das músicas: “mas como todos têm a sua ‘sina’ um a morte não levou (Milionário e José Rico, Sonhos de umcaminheiro); ser poeta, cantador, vaqueiro, aboiador é a ‘sina’ do sertanejo (Flávio José, Sina do Sertanejo); e lembro dela ainda uma menina/subiu pra mente, ela virou minha ‘sina’ (Charlie Brown, Sino Dourado).Registre-se, ainda,  um composto ‘malsinado’ em que figura o valor não marcado de ‘sina’, apesar de o composto ser negativamente marcado.

Percebe-se, nesse breve texto, que a inteligência humana possui uma capacidade indescritível para criar, substituir, alterar, transformar sentido de palavras, mesmo sem conhecer a origem delas. Assim, as mudanças na linguagem são instrumentos de civilização e tais mudanças se devem à mediação da vontade das pessoas em relação à vida, ao mundo, aos objetos.

DICAS DE GRAMÁTICA

BEM-VINDA E BENVINDA?

– Certamente que a dona Benvinda será sempre bem-vinda. Sabe por quê?  Ora, porque “bem-vinda”, expressão grafada sempre com hífen, mesmo depois do Acordo Ortográfico, é uma palavra formada por justaposição, cujo sentido se atém a “bem acolhido (a)”. Já “Benvinda ou Benvindo”, além de representar um substantivo próprio, é também uma palavra formada por aglutinação.

A SUJEIRA IMPRÉGNA OU IMPREGUÍNA?

– Um aspecto a que devemos nos ater é que o “g”, presente na palavra em questão, é mudo (sem som fonético). Assim sendo, em decorrência desse notável aspecto, a forma correta de pronunciá-la é impregna. (a existência do acento se deve somente para uma melhor identificação da tonicidade).

HISTÓRIA OU ESTÓRIA?

– “História” se refere a acontecimentos reais, baseados em documentos ou testemunhos. Enquanto que “estória” diz respeito a narrativas imaginárias, contos, lendas, fábulas, entre outras.
Contudo, apesar de tais diferenças, percebe-se que a forma com a qual comumente nos deparamos é “história”, relativa aos dois casos. Portanto, nada que desabone o uso desta com o sentido de contos, lendas.

Luísa Galvão Lessa Karlberg – É Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montréal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; Membro da Academia Brasileira de Filologia; Membro da Academia Acreana de Letras; Professora Visitante Nacional Sênior – CAPES.

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