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A injustiça

Com um sorriso de canto de boca, desses de quem se orgulha do que vai dizer, ele subiu o tom para soltar um “ Não é fácil conviver com José Lírio de Oliveira Dourado”. Estávamos no elevador do consultório, ele, eu e seus dois interlocutores. Convivi com o grupo por longos dez andares, o suficiente para me fazer lembrar a amiga de infância de quem já falei um milhão de vezes aqui. Vamos chamá-la de Violeta, que tal?

Suficiente também para me colocar curiosa a buscar no google o nome duplo e os sobrenomes cheios de glória. Sim, Lírio falava de si. Orgulhava-se de ser uma criatura difícil. Vestia calça de alfaiataria vincada, camisa de manga comprida e colete de lã no calor de 26°C da bem-vinda primavera de São Paulo. Nos cabelos, mais gel do que o necessário, na pele uma quantidade também exagerada de perfume, sapatos brilhosos à exaustão. O homem era todo excesso.

Justificou a sua máxima – que, pelo suspiro dos seus, é repetição – com uma ladainha sem fim sobre como a competência de uns irritava outros, como a inveja se manifestava em forma de impaciência e intolerância e injustiça, injustiça, injustiça.

Violeta seria amiga de Lírio. Ou não. Violeta e Lírio não se suportariam. Um elevador, um prédio comercial, uma cidade, o mundo seria pequeno demais pra tanto brilho. Passei grande parte da infância na companhia dela. Me compadecia a irritação, a inveja, a impaciência, a intolerância, e, adivinha, a injustiça, a injustiça, a injustiça que se aplacava sobre a menina. Tomei anos – sou de peixes, lembrariam os astrólogos – para me dar conta de que a coisa não era bem assim. Violeta, quase sempre, dava motivos para ser tratada com uma ou outra restrição pelos colegas de escola, pelos meninos nas festinhas, pelos professores. Demorei ainda mais para entender que deveria eu também passar a desenhar contornos mais definidos no nosso relacionamento. Até que 2018 (vocês me entendem?), foi quando paramos em definitivo de conviver.

Faz umas duas semanas que ela comentou uma foto antiga no meu instagram. Uma foto de minha filha. Foi um comentário doce, e aí dois palitos pra eu segui-la de volta, distribuir mil corações nas fotos do filho dela, e está mesmo grande e lindo o rebento. Mas minha gente, toda vez que a bolinha fica vermelha, tem um recado à la Lírio postado sabe-se lá pra quem. “As inimigas que lidem comigo”. “Deus me livre do ódio disfarçado de sorriso e da inveja disfarçada de amor”. “Nunca bata de frente com um libriano, pode lhe custar a saúde”(!). Até um “vocês vão ter que me engolir” saiu esses dias.

A paixão triste, não é? Que difícil deve ser se sentir assim perseguida pelo mundo. E que narcísico também. Assim como Lírio me lembra Violeta, Violeta me lembra um pouco o que temos visto nesse outubro sem fim. Eu que – como vocês, aposto – navego do lado da esperança e da fé na vida, no outro, sinto uma vontade danada de dizer a Lírio e a Violeta que o mundo é maior que eles, que a coisa pode ficar toda muito mais bonita se a gente topar dividir a saúde, as flores, as oliveiras e o ouro. Sem disfarce e com justiça. Boa semana, queridos.

 

Roberta D'Albuquerque: Roberta D'Albuquerque é psicanalista. Email: robertadalbuquerque@gmail.com