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Já pensasse?

E se Barros finalmente tomasse coragem? E se ele tivesse coisas lindas a dizer? E se fosse Cecília a destinatária das coisas? Barros com camisa branca sem nem um amassadinho, cabelo brilhoso de gel, mesmo com gel, desobediente e cheio de cachos. Cecília com o rosto liso de botox e ácido retinóico, igualzinho à camisa de Barros. Ele na cabine da portaria, ela sentada na mesa do jardim do térreo, falando fino com o cachorro desbotado. E se ocachorro desbotado não tivesse nenhum dente? E se ela usasse a mesma voz fina pra responder: eu também, Barros, sempre gostei de ti. E se Barros abrisse uma brechinha no vidro da cabine, se Cecília soltasse a coleira ao se aproximar? E se o cachorro juntasse as sobrancelhas de velhinho na tristeza de quem antecede a perda? E se ela, a partir daí, parasse de servir a ração na palma da mão para o cachorro velhinho? E se o mimo se voltasse para Barros. Barros sentado na varanda do 61, já sem camisa, dando as suas lambidas na mão de Cecília. E se as mãos de Cecília que antes cheiravam a Royal Canin Senior, gastassem os dias grudentas de goiabada e de baba de Barros. E se fosse goiabada o que ela servia? E se a goiabada levasse Barros de volta a infância em Minas? E se Barros for do interior de Minas? E se eles aproveitarem as férias da portaria e do hospital pra conhecer a família do noivo em Alfenas? E se na emoção da viagem, os dois de camisa e cara engomadas, esquecessem do cachorro velhinho? E se ele, de velhice, fome e de rejeição, empesteasse o 61 com cheiro de podre? E se os vizinhos do 62 também saíssem de férias para o interior deles? E se, com o apartamento vazio, ninguém ouvisse os latidos de dor? E se tiver doído muito? E se a mãe de Barros, vaidosa e enrugada, se sentisse ameaçada pela presença lisa de Cecília? E se ela não fizesse esforço pra disfarçar a ameaça? E se chamasse o filho único de canto e lhe dissesse que não, não faz gosto? E se Barros fosse filho único e, sendo filho único de mãe mineira, sentisse que não havia espaço para a falta de gosto ? E se como ela, começasse a lhe faltar também? E se o faltar de Barros fosse fazendo brecha no gostar de Cecília? E se Cecília pedisse licença pra comprar goiabada? E se ela desviasse o caminho até a rodoviária e subisse no primeiro ônibus de volta pra São Paulo? E se ao entrar em casa desse de cara com Bebê? E se o cachorro velhinho se chamasse Bebê? Bebê durinho, com as sobrancelhas de espanto, opaco, exato contrário do cabelo de Barros. E se ela se fechasse em luto. E se nem força pra ligar pro hospital tivesse? E se ao perder Bebê, Barros e o emprego, perdesse também a vontade das tardes no jardim. E se Cecília perdesse qualquer vontade? E se assim a tristeza lhe cavasse rugas horríveis no rosto. E se Barros, ao retornar à portaria, instalasse um ferrolho no vidro da cabine? E outro e depois outro. E se ele, já que pouco visto, parasse de passar as camisas? E se parasse também de falar e sem abrir mais a boca desistisse de escovar os dentes? E se ao parar de escovar os dentes e ao não parar de comer goiabada, os perdesse todos? E se os dois, um tão fechadinho quanto o outro, fossem se tornando cada vez mais bebê, cada vez mais imóveis, cada vez mais mortinhos? Já pensasse?

Roberta D'Albuquerque: Roberta D'Albuquerque é psicanalista. Email: robertadalbuquerque@gmail.com