Este é um daqueles dias em que o louco amanhece assim sei lá. As anotações do espírito continuam como há mais de meio século. As horas passam sonolentas, sorrateiras e escorregadias feito o relógio do Salvador Dali. Na boca, um gosto estranho de já chega. Vai ao banheiro e vê horrorizado que não tem envelhecido, apesar do crepúsculo que se avizinha todo dia. Os trampolins da vida estão com as molas quebradas e o ânimo para o salto escorreu pelo ralo pobre de todas essas terríveis horas.
Notícias boas não chegam, nem vão. A peste assola o mundo vasto de meu Deus. O constante anotador de tudo está infeliz, porque só há para tomar nota os registros tristes de uns que vão e outros que ficam por aqui, fazendo alguma coisa que a nós não compete avaliar.
O melancólico de ontem dá lugar ao sombrio de hoje. O desespero jamais atingirá a alma do suarento poeta. Mas a desesperança já bate à porta. Os homens ficaram tão obtusos, tão abobalhados e agem feito sonâmbulos ou mortos vivos. As mulheres, nem tanto.
Ele está ensimesmado, desesperançado, caótico. O poeta louco vocifera contra as paredes do apartamento praticamente sem móveis. Está agora aos gritos. Bate a cabeça contra o vidro da janela. Alguns sugerem camisa de força, ou a presença dos homens parrudos da psiquiatria.
E a doidice ganha sujeito, verbo e complementos. Ele olha para o vazio e esbraveja:
– Ontem mesmo, ou talvez há dez anos, eu vi livros que batiam asas passarem voando através das janelas da minha sala de aula. Os homens da diretoria os haviam deixado no corredor da escola à mercê da chuva, ou do sol. Mas foi ainda pior para a humanidade: alunos adolescentes vândalos atiravam os volumes novinhos uns contra os outros a metros de distância. Drummond, Amado e Rachel foram se espatifar no canto da parede. Marx e Goethe aterrissaram ali pertinho. Não. Um país desse está fadado ao desaparecimento. Por Deus.
Pior é que os tais livros haviam sido comprados com os impostos pagos por todos, inclusive, pelos pais dos alunos que estavam a executar aquele ato de barbárie. Tudo isto é a cara desumana do Brasil dos ignorantes e avessos às ciências e às artes.
O poeta louco se esmerara no ensino da gramática. Zelou muito pela prática de redação. A interpretação de bons textos teve o seu devido tempo, de acordo com a carga horária. Mas esqueceu um fator crucial. Faltou fazer uma ponte entre as mensagens dos poemas, por exemplo, e a vida real. Isso ele muito pouco fez, ou pelo menos não fez o suficiente.
Por isso, o versejador enlouqueceu. Agora, nas suas miragens, vê hordas de ignorantes, ex-alunos seus, aplaudindo quando os seus próprios direitos estão sendo diminuídos. Nos seus cada vez mais raros momentos de lucidez, ele avalia que tão poucos daqueles meninos e meninas se deram bem na vida. Pouquíssimos. Ao passo que os seus antigos discípulos da escola particular são hoje advogados, engenheiros, médicos, altos empresários, dentre outros. Daí, ele dana a cabeça no vidro temperado e a doidice lhe invade o cérebro uma vez mais. Coitado.
De supetão, chega à soleira da janela deste tempo murcho e medonho o fantasma do Ivan Illich, o comunista americano mais enjoado do mundo. (Sim, nos Estados Unidos, os comunistas não são tão perseguidos quanto no Brasil. É que, lá, eles estão acobertados pelo poder das ciências e das grandes universidades. O meu amigo Noam Chomsky, por exemplo, esquerda desde as tripas, completou, ontem, noventa anos sem um arranhão.)
O nosso doido tem mais uma visão do outro mundo. Um fantasma tardio. Ele faz perguntas ao amigo Ivan. Ao que parece, os dois estão sentados no mesmo banco de praça, talvez. Tudo depende muito do estado mental do poeta.
– Qual é o título do novo livro?
– After deschoooling what?
– Haveria alguma ligação com o Plano Marshall?
– Sim, claro.
– Sem mais delongas, faça uma síntese. – Disse, entredentes, o homem das rimas.
Doloroso é perceber que ele fazia as perguntas e ele mesmo as respondia, até porque o Illich morreu em 2004. O poeta encantador com os seus poemas e as suas tiradas muito bem humoradas, às vezes debochadas, mas demonstrando uma inteligência agudíssima, havia ficado com uma dúzia de parafusos a menos. Dá dó.
Convém deixar claro que uma tradução estendida diria ser o título do livro O que virá depois da desescolarização?
Virá o que está posto muito claramente aos olhos dos mais analíticos. Tudo está previsto no Plano Marshall. E os teóricos financiados pelos milionários se houveram tão bem e se fizeram tão inteligentes que, além do produto bruto que beneficia o capital, geraram, sem querer, o que há de mais abjeto no terceiro mundo, o pobre de direita. Este é exatamente o ator social que mais apanha e que ainda aplaude aquele que o escorraça todo santo dia. É o mais enganado de todos.
Os americanos urdiram o Plano Marshall com extrema competência. No primeiro nível, às claras, está o soerguimento econômico dos países arrasados pela Segunda Guerra. Num segundo cenário, está a perseguição aos partidos comunistas, principalmente, na Itália e na França. Só que, por debaixo dos panos, nas notas de pé de página e nas entrelinhas estrategicamente elaboradas pelo General Marshall, vêm os detalhes do conteúdo ideológico a ser veiculado através das escolas e universidades.
De faixada, logo no primeiro artigo, segundo as modernas constituições dos países ocidentais, todos os cidadãos são iguais perante a lei. Mas Illich desata os nós da hipocrisia e fala da separação entre escolas para ricos e escolas para pobres. Aos primeiros, todas as regalias; aos demais, pouca coisa. O segredo é a perpetuação do poder. Com a boa escola que têm, os filhos dos poderosos também assim o serão. Ao passo que aos demais restam as sobras do banquete da elite. Enquanto os primeiros serão os diretores-presidentes, executivos de toda ordem, dirigentes e líderes em geral, haja visto que estudaram em Princeton, os demais, que pagaram péssimas faculdades a altos custos, serão exatamente os subalternos, os pequenos funcionários, os assalariados mal pagos, os faxineiros, os boias frias, os operários em geral.
Nas entrelinhas do grande plano, está que os pobres deverão ser cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Tal fator foi escamoteado pelos poderosos e aqueles que chegam a este tipo de conclusão são considerados subversivos, como eu, pois estão a subverter a ordem segundo a qual nada deve impedir o avanço do capital no rumo das últimas fronteiras, nem que para isso tenham que ser assassinados povos inteiros, como os incas, maias, astecas, peles vermelhas, tupis-guaranis, dentre tantos.
Estamos arruinados e a situação está posta. No Brasil, os pobres de direita aplaudem a sua própria ruína e, mais que isso, muitos até se sentem elite, quando são assalariados rotos sustentados pela vilania do crédito quase fácil das grandes corporações financeiras em nível globalizado.