Numa das paredes do meu consultório, a que fica diante da poltrona dos analisandos, há uma bandeira com uma figura que se olha no espelho. Ao seu lado, uma planta desproporcionalmente grande, como que ampliada. O sol, duas montanhas e um fio vermelho – que pode ser tanto um laço de fita, quanto uma serpente – completam o cenário. No reflexo do espelho, o contorno da figura ganha preenchimento, ganha cor, seus cabelos, antes pretos, se tornam brancos. Elas se encostam e cada uma ultrapassa o limite da outra, invadem-se. Sob a cena, numa faixa branca, a frase que dá título a este texto.
Dezembro foi atípico no consultório. Normalmente, a partir do dia 15, entro em um clima de semi-férias. Ao menos a metade dos analisandos vai alegando trânsito, dor de cabeça e falta de conexão de internet. Lá pro dia 20, convencem-se quase todos de que o ano acabou. Começam a aparecer na segunda semana de janeiro e só voltam a pintar de azul os quadradinhos da agenda google do dia 20 pra frente. Os novos, os que gastaram uma linha das resoluções de ano novo com o desejo de mergulhar na análise, iniciam a paquera em fevereiro, corados de sol e espantados com as questões que insistiram em permanecer apesar da praia, dos fogos e das festas.
Esse ano não. Esse ano, quem precisou cavar buraco na agenda fui eu. A viagem pra Bahia, sobre a qual falávamos na semana passada, foi entrecortada por sessões remotas no início e no fim do dia. Foi recheio do sanduíche de intensivões de consultório nas semanas anterior e posterior para que os horários de todos fossem garantidos. Dizer que parei porque meus analisandos pararam não foi possível. Tive que bancar o “parei porque quis”.
Seguem aqui os meus e os novos, que esse ano começaram as entrevistas em dezembro mesmo. Eu acho tão bonito isso. Embora o mergulho e a insistência do nado longo – que faz uma análise- contenham em si, um sofrimento, uma quebra de compromisso interno, eles piscam em neon a palavra coragem. Qualquer coisa que venha depois da vírgula me interessa grandemente.
Lembrei do diálogo que tive com a Fernanda Bornancin, artista que me vendeu essa bandeira. Quando ela perguntou qual dos trabalhos eu gostaria de comprar, respondi sem pensar muito: “Quero o apesar do medo”. Ela me disse que, de pronta entrega, tinha somente uma com defeito e explicou: “há uma sombra provocada por um deslocamento de impressão, ela ficou um pouquinho desalinhada”.
Meu desejo para 2023 é que, como Fernanda, a gente não descarte ou esconda as sombras, que como meus analisandos, a gente encare, que haja espaço para olhar de frente o desalinhar, os deslocamentos e as impressões, que os cabelos possam voar brancos ou pretos, que o querer, apesar do medo, permaneça. Feliz ano novo, queridos. Obrigada pela companhia.