Eu sei que ninguém perguntou, mas, em 2022, eu pedalei mais do que 550 km. Para quem não pedala, e não fica por aí contabilizando a vida, pode até parecer um feito. Pra quem pedala a sério, é ridículo de tão pouquinho. Pra mim foi grande.
Na infância, passei longe de ser da turma dos Goonies – de lá pra cá na minha Caloi Ceci -, já adulta também não tive a fase ciclovia. Mas no último julho, me bateu tardiamente esse gosto. Foi nas férias em Recife. Minha mãe mora em frente a um desses postos de aluguel de bicicleta do Itaú e um dia, de manhã bem cedinho, as meninas dormindo, o céu nublado me desconvidando pra praia, mainha no supermercado, desci pra ajudar o tempo passar.
Meu Google linha do tempo tá aqui me dizendo que naquela terça-feira foram 12 km. Nos outros dias das férias repeti a operação mesmo quando fez sol. Voltei pra São Paulo com a marca da camiseta e da meia na canela (bem mirim) e 98 km na conta. Agosto e setembro foram fracos, mas em outubro eu desandei.
Ou melhor, em outubro eu andei! Vinte minutinhos à noite, vez por outra, uma horinha no sábado ou no domingo. Até que a frequência foi crescendo, a ponto de reconhecer os frequentadores assíduos do Parque Minhocão, de me tornar uma, de perceber a falta do capacete da menina e a sua troca de namorados, de desviar do buraquinho na altura da primeira subida sem nem pensar, de dar conta da reforma do terceiro andar do prédio azul e discordar da cor que escolheram pra sala. Nada a ver.
No sábado chequei o Google, estava em 512 km. Ocorre que gosto de número redondo, vocês sabem. Era dia 31 de dezembro. E eu queria fechar o ano em 550 km. Cheguei no Minhocão às 9h, tava tão quente, tão bonito. O povo de biquíni, sem camisa, cachorro, criança, uns correndo, uns dançando, uns pedalando, uns jogando bola. Fiz minha força, mas quando olhei para o relógio, pensando estar próxima do meu objetivo, ainda eram 14
km, eu precisava de 38. Na verdade, eu não precisava de nada, mas queria. Pensei tanto nisso durante o ano, o querer e o precisar. Na diferença entre os verbos, em como a gente os confunde. Uma ironia se comprometer com uma precisão (é de propósito que talvez nem exista (de novo), sei lá como o Google mede essa quilometragem. Ao mesmo tempo vejo beleza nesse desafio, como uma brincadeira que nos convidamos a
participar, como uma música que colocamos pra fazer trilha da vida.
Pois que desisti no 32 km, tava muito quente. Mas aí, na curva da saída, começou a chover. Uma chuva grossa, sabe? Fresquinha. E, do nada, a playlist tomou corpo, eu desisti da curva, peguei a subidinha, ri do buraco, percebi a menina sem namorado, mas com capacete, achei que a sala nova do prédio azul tinha ficado tão linda, a sala do prédio azul era, a partir dali, a sala mais bonita do mundo e cantei grande o refrão do fone.
Cheguei em casa às gargalhadas quando descobri que a empolgação me fez passar do redondo. Esse ano pedalei 551,76 km. O resto do dia 31 e o dia 1 – esse dia 1 de que nunca mais vou esquecer na vida -, foram ilustrações da imprevisibilidade e da música que ouvi na hora exata do primeiro pingo de água. A felicidade é mesmo uma arma quente. Quente.