Antônia guardou na cabeça o barulho da roda do carrinho. O barulho e a imagem da própria mão tentando impedir o tempo de passar. A unha quebrada agorinha numa cena tão sem sentido no caixa um do supermercado, o mais pertinho da porta. Ela tentando salvar a garrafa de azeite que ia desequilibrar com o tranco da esteria e aquele plástico duro que separa a gente da moça no meio caminho. Ela já na parte de colocar as compras na sacola e o azeite ainda antes do plástico. Danou a mão no negócio. Na velocidade e na força de quem vai evitar um acidente. Mas doeu de pinçar a espinha. Quebrou tão feio. A do polegar, uma fenda vertical, passando da metade da unha.
Deu uma vergonha. Vergonha de fracassar, sabe? Quase como se mil pessoas assistissem à batida. “Lá vai ela de novo”, uma diria. “Não presta atenção, que mulher avacalhada”, diria outra. Até que numa sala, em alguma língua estranha, dessas com muitas consoantes – porque a essa altura, na cabeça dela o acontecido já era notícia de telejornal mundo a fora – um mais sincero decretaria: mas só faz merda essa daí. E pronto. Revelaria-se o que vem tentando esconder.
Cada um nas suas compras, claro que não tinha ningúem prestando atenção em ninguém. Mesmo assim soltou um “não foi nada” pra moça do caixa que nem olhou pra ela, nem respondeu. “Débito ou crédito?” Era um azeite, uma duzia de ovos, um pão sem glúten, três tomatinhos, um Diabo Verde e um Chokito que também sem um carinho, ninguém segura esse rojão. “Quer sacola”? “Quero”. “Quantas”? “Pode ser uma”. “Mas vai misturar o diabo verde”? “Só faço merda merda mesmo”, pensou.
No caixa dois, dona Solange, cabelo lilaz e vestido de flor, fazendo confusão porque a garrafinha de kefir era R$3,29 na plaquinha e R$3,89 no computador. “Talvez a senhora tenha se confundido”. “Como é, meu amor? Você tá dizendo que não enxergo direito, é? Isso tem nome, sabia? Etaristarismo”! Lá chamam um moço pra buscar a plaquinha enquanto ela espera numa raiva tão contida quanto o próprio intestino que não funciona há quatro dias. Já tentou ameixa, óleo mineral, probiótico e nada. O moço voltará, será mesmo R$3,89.
Dona Solange, não costuma vir no Mambo. Encontra tudo o que precisa no St.Marche do shopping. Encontra tanto que vai pelo menos uma vez por dia buscar alguma coisinha no mercado. Daí que conhece todo mundo de lá pelo nome e guarda a sensação de que eles têm por ela o mesmo apreço que pensa ter por eles. Vão estranhar o kefir. Comprou ameixa na sexta, mamão a semana inteira, ficaria óbvio o problema íntimo que vem enfrentando.
E é nessa energia de perseguição que Dona Solange vai fazer uma escolha ruim, da qual se arrependerá por uns bons anos. (Continua na próxima semana)