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Não se assuste pessoa, se eu lhe disser que a vida é boa

Da esquina de minha casa, vem uma música de trio elétrico. Dos grandes, dos que ocupam as avenidas com nome de carnaval, dos que alcançam alturas altíssimas. São 11h da manhã e, pelo barulho das vozes que o acompanham, há uma multidão espalhada pela Baronesa de Itu. Tomei até um susto.

Mas não era nada disso. Vi do vitrô do banheiro que, diante do toldo montado para o que seria o ponto de apoio de um bloco marcado para começar às 14h, o som tocava para umas 6 pessoas no máximo. E o pior, o número reduzido de ouvintes se igualava à quantidade de músicas escolhidas para – desculpem a gracinha – esquentar os tamborins. Um looping de meia dúzia de marchinhas em uma gravação ao vivo. Não há quem aguente.

Tudo isso pra dizer que, embora o dia ameaçasse chuva das de inviabilizar passeio, saí pra passear. E porque fui, vi o que talvez tenha sido a cena mais bonita de fevereiro, pelo menos pra mim, pelo menos até agora. Desci a Angélica pedalando até o minhocão. Tinha acabado de subir a primeira rampinha no minuto que começou a chover. Os pingos iam no meio do caminho entre o céu e o asfalto, e um menino no patinete, devia ter uns 5, anteviu o fenômeno. Olhou pra cima de boca aberta, estirou a língua e bebeu o primeiro pinguinho de chuva que encostou em São Paulo. Naquele mini segundo, o menino no patinete era São Paulo inteira.

Mas não foi isso não. Do outro lado da pista vinham um rapaz na bicicleta e uma moça logo atrás nos patins. Borbulhavam juventude molhada de chuva. Eu, na torcida pra que algum evento no caminho aproximasse os dois, fariam uma dupla linda. De onde estou, percebo que ambos trazem um ponto de verde na roupa, é um sinal, o boné dele e os tênis dela. Na minha cabeça Dê um rolê  – ‘Eu sou, eu sou, eu sou amor da cabeça aos pés”, lembra?. Ele tira a mão do guidão da bicicleta, estende o braço. Ela responde com o bracinho também estendido. As mãos se encontram, ela alcança o banco dele e está feito o vento no cabelo e a carona na descida da melhor ladeira do minhocão. Já estavam juntos.

Foi depois deles que vi a cena. Andava com um senhor de boina, um cachorro branco e preto, desses que, de tão simpáticos, ficam a um minuto de dar um oi, assim falado mesmo. À frente dos dois, vinha uma mulher de uns cinquenta e poucos, olhava pra lugar nenhum, completamente dentro de si. Assim que a vi, acionei um milhão de possibilidades. Está lembrando de um acontecimento, planejando um? Está sóbria ou triste? Saiu fugida ou veio em busca de alguma coisa? Ela muda, sorri, um sorriso tão aberto e entregue que mostra até o segundo molar. Passa por mim, sinto o cheiro de banho, de presença. Na sequência vem o cachorro, ele fecha os olhinhos, abre de novo e sorri igual. Igualzinho. Como se o sorriso dela tivesse sido transmitido a ele, ou como se os dois tivessem no exato mesmo pensamento. Sentiram juntos o bom da vida. Sei lá, achei aquilo tudo tão bonito.

Roberta D'Albuquerque: Roberta D'Albuquerque é psicanalista. Email: robertadalbuquerque@gmail.com