Cresci em Garanhuns, interior de Pernambuco. Os carnavais da infância passei quase todos lá. Minha mãe tinha horror à bebedeira descontrolada da família de meu pai e meu pai tinha um gosto danado por família, bebedeira e descontrole. Os irmãos e primos dela e dele espalhados por Recife e Olinda. Daí que combinavam ou se impunham, não sei, um carnaval caseiro de interior.
Eu não achava ruim não. Primeiro porque as notícias que me davam do carnaval de rua eram do tipo filme de terror. “Uma coisa péssima, um calor de derreter, não dá nem pra pisar no chão de tão lotado, acaba que as pessoas se perdem dos amigos, as fantasias se enganchando umas nas outras, muita gente embriagada, sai briga em toda esquina e isso e aquilo”. Na minha cabeça de menina, eu tomava tudo por literal e constante. Imagina quatro dias sem pisar no chão, levada feito peixe na onda, vendo cardumes se estapearem até a morte, minhas escaminhas agarradas nas escamas de outros peixes e sem nenhum conhecido pra segurar minha nadadeira, tudo isso em mar caldeirão fervente. Sem contar os papangus de quem, se brincar, tenho medo até hoje.
As histórias do carnaval de cada ano, ouvíamos quarenta dias depois no almoço de páscoa na casa de vovó em Recife. Teve um ano que tia Lourdes resolveu ir pro Galo com os sobrinhos. Pois que ela, cheia de caipirinha na cabeça, se distraiu por um segundo pra olhar um grupo de sereias e marinheiros, passou um papangu e agarrou com toda força a bolsinha de paetê que mandou fazer pra combinar com a fantasia. Dentro, uns sei lá quantos “mi réis”, como ela dizia, confete e serpentina.
Não era o fim do mundo. Prejuízo até pequeno pra quem topa o sábado de carnaval no centro da cidade. Isso pra mim e pra tu. Pra ela, já braba de álcool e de calor, a coisa virou questão de honra. Mobilizou o grupo a correr atrás do papangu. Pega ladrão, pega ladrão. Não deu em nada, claro. Nem espaço pra correr ninguém encontra no meio do Galo. Pois a bicha desmontou a festa e fez a parentada levá-la na delegacia da Av. Rio Branco. Mas não teve deixe disso que a convecesse do contrário. Lá, sentada diante do delegado, no mais puro bafo de Pitú, ela descrevia o suspeito. Anote aí, um macacão frouxo de chita, a cara branca, aquele sorriso congelado, cabelo colorido pra trás. O senhor indo lá, acha.
Não foi, mas se tivesse ido teria achado pra mais de mil assim mesmo como ela contou. No ano seguinte, meus pais traíram o próprio combinado e foram pra Olinda. A turma toda de papangu em homenagem a tia Lourdes. Eu fiquei na casa de praia de uma parte da família que passou o carnaval batido, os quatro dias, quase que inteiros, dentro d ‘água. Disfarçado na alegria da praia, o pavor de vê-los fantasiados no fim da festa, de me imaginar encontrando essa roupa no armário de minha mãe na volta pra Garanhuns. Disfarçada na euforia dos carnavais já de adulta, a desconfiança de que qualquer papangu no meio da rua era meu pai, minha mãe ou tia Lourdes a me vigiar. Pronto, parei. Bora trabalhar? Feliz ano novo, queridos.