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Um marco na vida de tantos

            Há pessoas que trazem do céu a incumbência de marcar as vidas de outras. Ainda no estágio de anjo, um pouco antes de tornar-se humano, o Criador unge esse tipo de criatura acho que com um pouquinho de sebo aquecido de dromedário na testa. A incumbência desta unção é marcar um momento e um local a partir de onde o ungido passará a dar bons exemplos a serem seguidos por uns outros tantos, assim como no episódio diário em que Deus joga do céu um pozinho azul cintilante sobre as cabeças dos recém nascidos e, assim, distribui talentos entre todos, seja quem for, esteja onde estiver.

Bom mesmo foi que ele veio ao mundo nu como todos, com uma estrela na testa prontinha para brilhar, e bem no meio do Carnaval de quarenta e nove.

E então o estivador e padeiro casou com a bela e prendada moça da rua das castanholeiras. Ela fazia parte das Filhas de Maria, uma organização católica antiga. As bênçãos do padre não poderiam faltar. Houve até uma festinha simples e singela. Tomaram cajuína e comeram bolos de macaxeira dos melhores, além dos de trigo, claro. A futura madrinha morena linda, a melhor amiga dela, foi convidada, e mais alguns parentes e alguns vizinhos. Mas a união não foi tão convencional. Vieram embutidos no pacote nupcial dois menininhos, um mais moreno e o mais novo, um pouco mais clarinho. Coisas do altíssimo grau da miscigenação ocorrida ali pelos sopés dos Andes durante todo o século anterior e até agora.

O mais velho foi viver com os avós paternos a pedido destes. A avó índia e o avô descendente de espanhóis sarracenos o criaram por alguns anos, num sítio distante da cidade cerca de duas horas de viagem a pé, às margens do rio das nossas vidas felizes. Mais tarde, de lá ele voltou, pois, por exigência da nova mãe, carecia de estudos além da cartilha das primeiras letras e números.

Alguém disse que os dois eram meio irmãos dos que ainda viriam, mas essa ideia nunca foi aceita, até porque foram eles que adotaram a nova mãe e passaram a tratar as irmãs destas por tia e a mãe delas por avó, com direito ao Que Deus te abençoe três ou quatro vezes ao dia. Certamente, foi por isso que eles se deram tão bem na vida, apesar dos percalços. Com as bênçãos de Deus.

No início, as coisas foram bem difíceis para as duas crianças órfãs. Enquanto o maiorzinho ficou no velho sítio, o mais novo ficou meio que aos trambolhões, pra lá e pra cá. Conta-se que ele passou dias sendo cuidado por algumas moças doidivanas de vida devassa. É claro que o zelo para com a criança era nenhum, uma vez que elas mal – ou não – sabiam cuidar de si próprias. Felizmente, em pouco tempo, apareceu-lhe a nova mãe e fada que o transformou num dos ícones da escola da providência divina.

            Naquela manhã em que ela buscou as crianças, um anjo, que era exatamente o Zé das Arreatas, invisível, matreiro, serelepe, folgazão e escorregadio, é claro, arrastou-a pela mão e a levou até o cubículo onde estavam os dois meninos. Ambos, felizmente, marcariam a vida de todos, até porque, no episódio, houve a intervenção de um ente seráfico a mando do Pai da Criação.

A providência inicial foi um banho com sabonete ross, certificado puro, aquele da embalagem cor de rosa. Os dois ficaram cheirosos, uma vez que foram aspergidos, também, com a água de colônia. A roupa era pouquíssima mas, no dia seguinte, ambos já tinham camisas e calções bem feitinhos pela nova mãe e pela avó postiça, que eram costureiras exímias. Daí a incomensurável surpresa do pai ao vê-los radiantes sentados nas cadeiras da sala da vizinha gentil.

Não tardou uma semana e a nova mãe começou a tomar as providências relacionadas à saúde das duas crianças. Chás de ervas, unguentos, benzedeiras e até uma tia velha cearense, que mascava tabaco, colocou na altura do umbigo deles um emplastro com a guimba que ela mastigava. Mas as lombrigas eram metamorfoseadas e tinham super poderes. Elas não cediam espaço nem à força de oração. É claro que os métodos eram rústicos. Também, pudera. Corriam os anos cinquenta do século anterior.

Vieram, pois, os remédios fantásticos que os transformaram nos homens mais bonitos do Farol. O principal desses fármacos era o famigerado tiro seguro, um composto estranho que fazia as crianças expelirem os vermes por cima e por baixo. A mistura era tão infernal que o vômito vinha primeiro e as fezes, com as lombrigas inteiras, vinham em duas horas de relógio de parede. Pior é que a maioria das crianças da vizinhança arrumavam o estranho hábito de comer barro, o que tinha como consequência os surtos de vermes que saíam pela boca pela madrugada adentro. Foi só com o aparecimento deste tal tiro seguro que muitos menores foram curadas e se livraram do açoite, até porque uma corda dobrada ficava nas proximidades. Se o menino se negasse a ingerir a coisa, a situação se complicava e a peia fazia as costas arderem feito pimenta esporão de galo.

            Então, o menino mais novo ficou sob os cuidados de uma mãe linda e novinha em folha. Ela era um encanto de moça e ele era pacato e caladinho no canto dele. A casa se revestiu de outros ares. Agora, ali, havia uma criança para ser cuidada por todos, posto que, só dois anos mais tarde, os irmãos mais novos por ali começariam a aportar para fazer barulho real, isto tudo no decorrer dos anos cinquenta e sessenta.

Não demorou nem uma semana para todos perceberem que era de carinho a necessidade do menino. Em circunstâncias trágicas, dele a mãe legítima havia sido levada. Era simples: bastava alguém para dar a ele a merecida atenção de uma criança na primeira infância. Ali haviam, pois, cinco adultos ciosos de todos os cuidados tidos e merecidos. Agora, sim, ele estava cercado de acalanto por todos os lados.

Dizem alguns psicólogos e espiritualistas que Deus faz com que os mais novinhos esqueçam o que lhes acontece até os quatro anos de idade, porque muitos perrengues podem ser vividos pela criança na sua inserção no mundo dos adultos e alguns, ou a maioria deles, podem ser bastante danosos à psique infantil.

Aos sete anos, a nova mãe o matriculou no grupo escolar. Aquela era uma época em que as professoras eram enérgicas acima do normal. Ranzinzas no fio da navalha e no berro do cabrito. Nada era tirado por menos. A palmatória era usada com frequência, notadamente, na hora da tabuada. A didática, a metodologia e as pedagogias da vida eram por cima do lombo dos mais afoitos. Mas ele nem se apercebeu disso. Era de uma índole sossegada e organizado desde a mais tenra infância, o que lhe foi passado pela agora mãe de primeira viagem. Pouca coisa o perturbava ou aborrecia. Era apenas uma criança calada no meio do barulho feito pelas demais. Eram assim os quereres de Deus.

Um dos primeiros traços apresentados pelo menino agora estudante foi a letra belamente desenhada. Desde os primeiros anos, a caligrafia clássica passou a ser uma das suas características mais marcantes. Parecia aqueles escriturários dos cartórios antigos que tinham traços que ainda hoje muito lembram o Escrivão Isaías Caminha, personagem do festejadíssimo Lima Barreto. Recordam ainda as cartas de amor de Dirceu para Marília, do poema de Tomás Antônio Gonzaga.

É, sim. Em um dado momento, alguém que tem a letra bonita e verve grandiloquente é sempre lembrado para escrever as tais lamúrias dos amantes e os idílios romanescos. O Zé fez isso.

Ele tinha uma bolsa escolar de couro marrom que ia e vinha todo santo dia. Ela própria já era símbolo da tenacidade e da vontade de vencer demonstrada desde muito cedo. Nunca se viu tamanha obstinação; esta, a mesma que foi herdada pelo irmão imediatamente mais moço.

Cuidadosa como ela e sempre vigilante com relação ao futuro dos filhos, a mãe pediu e a ela foi concedida, pelo governador lino, bolsas de estudos para o novo filho e para os demais irmãos que aparecessem. E foi assim que se iniciaram os estudos e a saga do maior campeão que o colégio das freiras já viu.

O Zé Anotador de Tudo lembra uma ocorrência que marcou a vida de todos os alunos do colégio à época. No dia da formatura do curso ginasial, desde cedinho da manhã, ele já amanhecera meio nas nuvens. Ganhara de presente do governador do estado, que viera da capital para o evento, um terno de tergal, o tecido da moda, com direito a jaqueta e gravata, sapato e meias. Mais tarde, ele soube que as freirinhas haviam colocado no mural da escola todas as provas que ele tinha feito no decorrer do ano, de março a novembro.  Mais de cinquenta provas, todas com a nota dez. Era essa a marca da primeira de tantas conquistas. Estava traçado o destino do campeão de tantas vitórias.

A mãe fez tudo para que os filhos brilhassem. Mesmo nas madrugadas, em companhia do Zé, a intenção era dar incentivo a este, mais novo, que logo também se tornou um obstinado.

Como para ela os filhos deveriam ter um ofício que lhes servisse de amparo nos possíveis revezes da vida, foi o novo filho aprender a profissão de alfaiate. Como sempre, ele se mostrou talentoso e se fez especialista em calças masculinas, aquelas cujo segredo maior era colocar as braguilhas à moda antiga.

Depois de dois anos na alfaiataria, ele se fez exímio datilógrafo.  Em segredo, lá ia o Zé ver o irmão, no escritório de uma grande casa comercial, datilografando com uma velocidade estrepitosa. Deixava-o atônito toda aquela rapidez e, ainda, o fato de os dedos não se enroscarem um no outro.

Vieram algumas namoradas para o gajo muito bem apanhado, posto que tinha a pele bem clara e os cabelos pretos penteados pra trás à força da gomalina. Mas tinha um problema. Era filho de pobre e as moças que ele gostaria de namorar não estavam ao seu alcance, justo porque a sociedade se dividia em estamentos bastante claros. Assim do tipo rico casa com rica, ou vice-versa, o que nem sempre deu certo, uma vez que a superior maioria dos que se achavam endinheirados findaram indo à bancarrota com o declínio da borracha. Prevaleceu, pois, os que detinham conhecimentos angariados através dos estudos no colégio das freiras.

Enfim, aos vinte anos, o irmão exemplar foi servir ao Exército. Pior foi que o tal serviço ocorreu no vizinho Território hoje tornado Estado, o que era um sacrifício a mais, uma vez que as distâncias chegaram a ultrapassar os mil quilômetros dos pais. Mas ele, mais uma vez, foi, viu e venceu. O baixinho era e ainda é homem pra qualquer empreitada ou circunstância.

De volta da aventura em farda, o gajo intrépido colocou na cabeça que deveria ir para a capital. E aí a estrela brilhou ainda com mais intensidade. Em um ano, ele foi aprovado em meia dúzia de concursos públicos e escolheu o que bem quis.

E foi dessa forma que ele fez um curso de Direito muito bem feito na universidade, onde ficou empregado até a aposentadoria na função de procurador federal. Registre-se que ele foi o primeiro servidor administrativo da Casa a fazer um curso de pós-graduação em nível de especialização, em direito tributáriona Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.

O bom trato com o rico dinheirinho ganho nos empregos conseguidos através de concursos públicos sempre muito concorridos, e onde ele nunca conseguiu se desvencilhar da primeira colocação, fez dele um homem de posses bastante interessantes.

Tem ele sido o grande modelo e a luz no fim do túnel a ser seguida sempre e até agorinha mesmo. Exemplo para uma cidade inteira, se fez o marco da vida de tantos e o maior orgulho da mãe postiça que lhe deu carinho e atenção, e o transformou no filho que ela não teve, mas muito amou.

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Cláudio Porfiro: Cláudio Motta-Porfiro é romancista, cronista, poeta e palestrante. Membro da Academia Acreana de Letras. Email: claudioxapuri@hotmail.com