Acordei meio bêbada de anestesia e perguntei pro povo da sala: passei por média? Disseram que sim, como num coro de anjo. Siiiiimmmm. Bem, pelo menos foi o que eu ouvi. Daí que fui pegar o resultado no aplicativo do laboratório sentada em cadeirinha de algodão, no alívio dos alunos nota dez. Fiquei em recuperação em cada linha do laudo, boletim todo riscado de caneta vermelha, se brincar até no conselho de classe me reprovaram. Foi gastrite, esofagite, inflamação de tudo que é jeito. Tô só o pó. Volto no gastro sexta, mas o google me disse que a culpa é do estresse. Fiquei tão estressada com esse exame que se meu estômago se soltar do esôfago e os dois escorregarem intestino adentro e saírem por onde eles quiserem sair, capaz de eu achar normal. Não me espanto com mais nada nesse mundo de avental com a abertura voltada para a parte da frente.
É minha primeira endoscopia, então pode ser que eu tenha nascido uma estressada em pele de cordeiro. Pergunta aí pro povo que me conhece. Vão dizer: ah, Roberta? Roberta é quase demente de tão tranquila. Eu também achava. Mas pode ser também que a coisa tenha se estragado de uns tempos pra cá. Sei lá. Embora eu não tenha tido assim, um motivo específico pra me preocupar nos últimos anos. A não ser.
Uma pandemia? Uma lembrança diária de que dá pra morrer de tosse. Ou quem sabe um medo até do pacote de pão da padaria. Pão com gosto de álcool, porque tinha que limpar o pacote, lembra? A mão cheia de alergia ao álcool. Ou a lembrança de que tem gente que tá sem pão. Ou de que a padaria fechou. E a loja, e o salão, e a lanchonete e academia, e a outra, e a outra. Isso só na quadra de casa.
Ou sei lá. Uma mudança no meio dessa mesma pandemia. Sair de casa no caminhão, com uma planta na mão e uma caixa de taças na outra, com medo do motorista, que tá com medo de você. Deixar os gatos pra trás, descolar outros, levar as crianças que vão precisar de recuperação, boletim interno riscado de caneta vermelha. Só as suas não. As de todo mundo.
Será? Talvez a eleição. O povo todo ao redor da TV, a cara de pavor, as mãos apertadas no celular, os adesivos descolando nos abraços fingindo esperança. Ou o segundo turno, o medo, o início de janeiro. Não?
Os almoços com as amigas, todo mundo mal, todo mundo muito mal. A clínica. A construção do lado do consultório. O caminhão de cimento girando como se fosse um planeta em volta do sol. Sem parada, sem parada, sem parada. Ou a reforma do sétimo andar, e do nono, eu moro no oitavo. O barulho das motos na Angélica. A casa e o consultório na Angélica. E os ônibus, e os caminhões e o prefeito que mandou desmontar as barracas do povo no minhocão. As barracas que são a casa do povo do minhocão. Desmontar e levar embora. E a guerra. E a crise. E os juros.
A secretária do gastro que acessou meu exame sugeriu pensar positivo. O que vocês acham? Penso?