Nunca antes nas conversas com as amigas se respondeu tanto “não” para o “e aí, tudo bem?”. E depois se deu risada. E depois se disse “brincadeira, tudo massa, e tu?”. Nunca antes nas biografias dos aplicativos de relacionamento se disse tanto estar com a terapia em dia. Uma coisa meio em dia com o carnê do baú. Nunca antes no sistema solar os planetas estiveram tão retrógrados. E por tanto tempo. Nem usar essa palavra retrógrado ninguém mais usava, vai?
Acho que a gente não tá bem não, galera. Sério mesmo. Aquele meme do Mussum/Keanu Reeves no fim do ano, todo ano, há uns dez anos, é meio complicado, não? Falando sério agora, vocês ouviram o (podcast) Café da manhã de hoje? Como os brasileiros analisam a própria saúde mental é o título do programa. A convidada, sempre certeira, Vera Iaconelli nos lembra de duas coisas importantes. Ainda que toda a população do mundo tivesse acesso a psicanalistas, psicólogos e psiquiatras, ela diz, há algo de estrutural na organização de nossas vidas que é em si adoecedora. É social e coletivo.
Novidade não é. Mas tenho vontade de dizer isso todo dia, várias vezes por dia, aos analisandos, aos amigos, a mim mesma. Sempre que alguém me diz que não adianta pôr o ovo, tem que gritar, porque a pata isso, porque a galinha aquilo, eu me arrepio da cabeça ao dedinho do pé. A vida já é por demais demandante. Galera querendo convencer todo mundo que dá pra acordar às 5h, 5am club, que dá pra ler x páginas por dia, que dá pra aparecer nos stories, mas aparecer do jeito certo, com comida, com bicho, com filho, uma poesia, uma música e uma festa por semana, pelo menos, que dá pra investir, que dá pra juntar cinco milhões até os 40, que dá pra meditar, que dá pra encher a casa de planta, mas depende da planta, que dá pra ser não monogâmico e não sentir ciúme, que dá pra ser vegano e atingir as x gramas de proteína, que dá pra comprar uma composteira, comprar não, fazer. E tem fazer e mostrar, certo? Tem que gritar pra todo mundo que está em dia com o carnê do baú da ´vida ótima versão 2023’. Porque né? A galinha e a pata. Isso tudo com a mochila pra frente pra ninguém pegar o celular no meio da rua e com o aplicativo do banco desinstalado porque vai que pegam. Isso tudo com a barriga pra dentro e as costas retas, isso tudo sabendo que provavelmente ninguém vai conseguir se aposentar, mas por hoje, só por hoje, tente dormir as oito horas, mesmo que você só dê conta de deitar à 1h e tenha que acordar às 5h, porque o aluguel e o almoço das crianças e a crise e o povo dormindo na rua e a família e o metrô e o ônibus e o futuro e o futuro e o futuro.
A outra coisa que a Vera disse foi uma lembrança que também parece óbvia, mas não é. Saúde mental não é platô de felicidade. Sofrer é parte da vida, questionar-se é parte da vida. Essa tentativa de controle, além de ser cegueira de privilégio, não garante nada. Ao contrário, convida para mais sofrimento. E vocês, estão bem? Aqui, tudo massa. Brincadeira