Antigamente muita gente escrevia diário – escritores, sobretudo. Era um tipo de escrita de si para si mesmo, utilizada pelos mais solitários, introvertidos, intensos, no esforço de lidar com a estranheza do mundo.
Hoje as redes sociais parecem absorver grande parte desses escritos íntimos, que se tornaram mais uma escrita de si para os outros do que para si mesmo. Posts, stories, tuítes etc. compõem um gigantesco diário coletivo, onde nada é assim tão íntimo, muito menos privado, e obviamente pouco interessantes.
Foi-se o charme do diário, do segredo, escafedeu-se qualquer noção de privacidade. Quase tudo é público. O ‘eu’ está 24 horas em (super) exposição.
Por tudo isso, ao reler ontem um trecho do diário de Amiel, eu até ri alto. Amiel foi um professor de filosofia e escritor suíço do século XIX, que ao longo da vida escreveu 17 mil páginas sobre si mesmo. SIM, 17 mil páginas.
Ficou famoso por essa empreitada extraordinária, mas ao mesmo tempo se preocupava com a insalubridade desse ‘vício’, como se pode perceber por suas próprias palavras: “Esse diário me permite resistir ao mundo hostil, somente a ele posso contar o que me aflige ou pesa. Esse confidente me livra de muitos outros. O perigo é que ele evapora em palavras tanto as minhas resoluções quanto as minhas penas; ele tende a me dispensar de viver, a me substituir a vida. É minha consolação, meu estimulante, meu libertador; mas provavelmente, também, meu narcótico. Ele destrói o instinto sociável; ele é (dizia Michelet) um prazer solitário, onipresentemente nocivo, doentio, mau. ”
Lima Barreto também escreveu seu “Diário íntimo” e um “Diário do hospício” onde, aliás, por coincidência, cita Amiel. Enfim, de Amiel no século XIX e Lima Barreto no início do século XX até nós, nas redes sociais do século XXI, foi-se a folha de papel, vieram os computadores, celulares, tablets.
Mudam os suportes, mas esse tal ‘eu’ solitário e caótico, doente por atenção e sensível, que tenta se entender pela palavra, continua o mesmo, com a diferença: todo mundo pode ler e comentar. Coisa mais sem graça a vida que muitos tentam colorir.
Sísifos de nós mesmos?