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O calor está abafando a gente. Como medir? Que tal a temperatura do bulbo úmido?

Imagem: Ilustrativa/Arquivo

Como sabemos, o calor extremo está ficando mais comum nesta parte da Amazônia e no mundo e precisamos meios para medi-lo para fins de entender o seu impacto nos seres humanos e não humanos, cultivos e ecossistemas — em suma, na biosfera. No artigo do dia 21 de setembro neste jornal[i], fizemos uma análise de como a temperatura normal subiu muito quando comparamos agosto de 2023 com agosto de 2022 em três estações meteorológicas na cidade de Rio Branco. A média da temperatura normal subiu 1,8 graus Celsius (oC) e a médias das temperaturas máximas diárias ficou 3,2 oC mais quentes.

Provavelmente não é uma surpresa, mas setembro de 2023 ficou ainda mais quente do que agosto de 2023.  A média em setembro das três estações chegou a 29,1 oC, 0.3 oC mais alto do que em agosto.   A média das temperaturas máximas diárias, 36,1 oC, também subiu 0,4 oC.   Em outras palavras, o calor está se agravando.

Mas essa história é incompleta; falta o fator da umidade do ar.  A temperatura normal – quando fica mais próxima da temperatura do nosso corpo, 37 oC – indica que temos um problema de aquecimento dos nossos corpos.   Temos mais dificuldade de perder o nosso calor gerado nos nossos corpos com temperaturas mais altas do que em temperaturas mais baixas.  Porém, temos um mecanismo que nos ajuda a perder calor: a evaporação da água do corpo.

Vamos usar alguns números para ajudar a entender o processo. Vamos tomar um copo (300 ml) de água gelada a 4 oC.  A água vai absorver calor do estomago para chegar a 37 oC, absorvendo aproximadamente 10 Calorias (kcal) de energia.  Já sentimos um pouco alívio.   Mas quando a água evapora da nossa pele pelo suor ou via os nossos pulmões durante respirações, a mesma quantidade de água leva mais de 170 Calorias, 17 vezes mais energia![ii]  Como você pode ver, é muito mais importante beber água, mesmo sendo morna, do que esperar para tomar água fria, se quiser resfriar o corpo logo.

Mas esta evaporação (ou mais precisamente, transpiração) da água via suor e as nossas respirações depende da umidade relativa do ar que vai receber a água evaporada.   Se a umidade relativa é 100%, o ar não pode receber mais água e consequentemente o resfriamento via a evaporação de suor não funciona mais.   Aliás, com umidades mais altas, o nosso mecanismo de resfriamento via evaporação de água das nossas peles e dos nossos pulmões reduz a sua velocidade e sentimos calor ‘abafado’.

Vamos usar um exemplo. Recentemente tivemos temperaturas máximas de mais de 38 oC com umidades cerca de 45% em Rio Branco.   Com 38 oC, a temperatura do ar é maior do que no interior de nossos corpos.   Usando só temperaturas ´normais´, chegamos à conclusão de que se usarmos um ventilador, vamos esquentar o nosso corpo.   Mas na realidade, a maioria de nós usaria um ventilador, que passa mais ar quente, mas ao mesmo tempo, evapora mais rapidamente a água do nosso corpo via suor e de nossos pulmões, baixando a nossa temperatura interna.  Mas se a umidade relativa aumenta para 100%, a evaporação do suor não funciona mais.  Nós não aguentaríamos 38 oC e 100% umidade relativa por muito tempo antes de morrer.

Como se vê, temperaturas elevadas em combinação com umidade relativa alta, pode impactar a nossa saúde e vamos ver maneiras de estimar este efeito[iii].  Uma das maneiras mais fáceis de medir a combinação da temperatura e umidade relativa é usar a temperatura de bulbo úmido.   A medida é simples: coloque uma gaze ao redor do bulbo de um termômetro e mantenha a gaze molhada.  A evaporação da água na gaze reduz a temperatura do termômetro e quando a temperatura está estável, mede-se a temperatura de bulbo úmido.   Essa temperatura de bulbo úmido é abaixo da temperatura normal, que agora vamos chamar da temperatura de bulbo seco.  Elas seriam iguais somente no caso de umidade relativa de 100%.  Hoje em dia, no lugar de medir diretamente, calculamos a temperatura de bulbo úmido usando a temperatura de bulbo seco e a umidade relativa[iv].

Tendo valores abaixo da temperatura de bulbo seco deixa a temperatura de bulbo úmido sem muito drama; mas isso engana, precisamos só recalibrar as nossas perspectivas.  Alguns pesquisadores propuseram que a temperatura de bulbo úmido de 35 oC seria o limite fisiológico humano, depois de algumas horas a morte seria inevitável[v].   Eles escreveram o artigo para mostrar que a adaptabilidade humana a mudanças climáticas tem seus limites e os limites são duros.

Recentemente outros cientistas baixaram o limite fisiológico da temperatura de bulbo úmido para adultos jovens e saudáveis para 30 a 31 oC em regiões úmidas e 26 a 28 oC em regiões secas[vi].  Obviamente para crianças, idosos e pessoas com problemas de saúde, os limites ficam mais baixos ainda. Uma observação foi que já com uma temperatura de bulbo úmido de somente 28 oC, o corpo humano pode sentir severamente estressado[vii], a questão do impacto na saúde depende da duração deste estresse.

Como está a situação da temperatura do bulbo úmido durante o mês de setembro em Rio Branco?  Usando uma estação que tem valores um pouco mais baixos do que as outras duas estações, a mais alta temperatura de bulbo úmido foi 28,4 oC, e aconteceu no dia 27 de setembro as 12:55 da tarde.  Tinha leituras iguais ou acima de 28,0 oC também nos dias 4, 9 e 11 de setembro. Esses picos não foram as médias do dia, mas mostram que podemos, sim, ter valores de 28 oC ou mais em Rio Branco, mesmo se mede o tempo de duração em minutos/horas.  A média do mês da temperatura de bulbo úmido desta estação foi 24,7 oC.

O estresse térmico não é somente para seres humanos. Gado, do qual temos mais de 4 milhões no Acre[viii], também sente o calor e a situação se agravou nos últimos dez anos[ix].   Os rios e lagos também estão sendo impactados com grandes mortalidades de peixes acontecendo[x], sem falar de outros ecossistemas.

Em geral, as ondas de calor e as secas associadas empobrecem as sociedades e aumentam desigualdades sociais[xi]. Quem tem ar-condicionado em casa e/ou no trabalho sofre menos do que os que não têm. Pior, o acesso de água potável é crítico para o bem-estar e até sobrevivência de pessoas durante essas ondas de calor, exatamente quando a disponibilidade de água fica reduzida, especialmente para pessoas com pouca renda. Recentemente, o Município de Rio Branco declarou uma Situação de Emergência por causa da estiagem e desabastecimento de água[xii] e já ouvimos relatos de falta de água em comunidades rurais no Acre.

Sem mitigar as contribuições humanas a estas ondas de calor, corremos riscos enormes nas próximas décadas. Em um estudo feito para o município de Belém, o Centro de Pesquisa de Clima Woodwell, usou um modelo de circulação global para prever quantos dias por ano Belém ia ter temperaturas de bulbo úmido maior que 28 oC, se continuarem as emissões de gases de efeito estufa[xiii]. Atualmente ainda são poucos dias por ano assim com temperatura média diária acima deste valor.

Mas, se continuarem as tendências atuais, em 2040, seria cerca de 25 dias com temperaturas de bulbo úmido acima de 28 oC, aumentando em 2060 a 100 dias e em 2080, 200 dias, ou seja, mais do que a metade do ano quando um recém-nascida hoje teria 57 anos de idade. Este resultado foi confirmado em um estudo recente sobre as médias anuais de temperaturas de bulbo seco[xiv].  Quantas pessoas vão poder ficar na Amazônia nestas condições?

Esperamos que os modelos exagerem o impacto futuro e que possamos controlar as emissões de gases de efeito estufa. Se não, os nossos netos enfrentariam uma realidade inédita e muito mais dura em termos de calor extremo nas próximas décadas.

No momento, podemos fazer a realidade atual um pouco menos dura. Que tal agora facilitar a disponibilidade de água potável para que todos possam lidar melhor com as ondas de calor que temos e teremos nos próximos meses e anos?

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Foster Brown, Cientista do Centro de Pesquisa em Clima Woodwell, Docente da Pós-Graduação e Pesquisador do Parque Zoobotânico da Ufac.

Rodrigo da Gama de Santana, Mestrando em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais. Universidade Federal do Acre (Ufac).

Agradecimentos ao Dr. Roberto Feres, a Família Ferraz e Dra. Vera Reis Brown por terem coletado os dados usados neste artigo nas suas estações meteorológicas pessoais.  Fonte de dados: https://ambientweather.net/

https://vestibulares.estrategia.com/public/questoes/umidade-relativa-ar-e72cc415942/

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[i] https://agazetadoacre.com/2023/09/sem-categoria/mais-quente-do-que-o-ano-passado-sim-quanto-depende-da-medida-pesquisadores-explicam-aumento-do-calor-no-acre-e-alertam-sobre-o-futuro/. Acesso: 2out23.

[ii] https://www.engineeringtoolbox.com/water-properties-d_1573.html.  1 cal /g/ oC x 33 oC x 1 g / ml x 300 ml = 9.900 calorias x Caloria/1000 calorias = 9,9 Calorias; 576.4 cal / g (@37 oC) x 1 g /ml x 300 ml = 173.000 calorias x Caloria/1.000 calorias = 173 Calorias.

[iii]Cvijanovic, I., et al. 2023. Importance of humidity for characterization and communication of dangerous heatwave conditions. npj Climate and Atmospheric Science 6, 33. https://doi.org/10.1038/s41612-023-00346-x.

[iv] Stull, R., 2011. Wet-bulb temperature from relative humidity and air temperature. Journal of Applied Meteorology and Climatology 50, no. 11: 2267-2269.

[v] Sherwood, S.C. and Huber, M., 2010. An adaptability limit to climate change due to heat stress.  Proceedings of the National Academy of Sciences107(21), pp.9552-9555.  https://www.pnas.org/doi/abs/10.1073/pnas.0913352107

[vi] Vecellio, D.J. et al. 2022. Evaluating the 35 C wet-bulb temperature adaptability threshold for young, healthy subjects (PSU HEAT Project). Journal of Applied Physiology132(2), pp.340-345. https://journals.physiology.org/doi/full/10.1152/japplphysiol.00738.2021

[vii] Cvijanovic, I., et al. 2023. Importance of humidity for characterization and communication of dangerous heatwave conditions. npj Climate and Atmospheric Science 6, 33.

[viii] https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ac/pesquisa/18/16532. Acesso: 2out23.

[ix] da Silva, W. C. et al. 2023. Evaluation of the temperature and humidity index to support the implementation of a rearing system for ruminants in the Western Amazon. Frontiers in Veterinary Science 10.

[x] https://ac24horas.com/2023/09/30/morte-de-peixes-no-rio-amonia-atinge-aldeia-e-abastecimento-de-agua-em-cidade-do-acre/.  Acesso: 2out23.

[xi] Yin, J. et al. 2023. Future socio-ecosystem productivity threatened by compound drought–heatwave events. Nature Sustainability 6, 259–272.  Ciais, P. et al. 2005. Europe-wide reduction in primary productivity caused by the heat and drought in 2003. Nature 437, 529–533. https://doi.org/10.1038/nature03972.

[xii] https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2023/09/27/por-conta-de-estiagem-rio-branco-decreta-situacao-de-emergencia-em-areas-que-sofrem-com-desabastecimento.ghtml.  Acesso: 2out23.

[xiii] https://www.woodwellclimate.org/climate-risk-assessment-belem-para-brazil/. Acesso: 2out23.

[xiv]Xu, Chi, et al. 2020. Future of the human climate niche. Proceedings of the National Academy of Sciences 117.21: 11350-11355.

[1] https://agazetadoacre.com/2023/09/sem-categoria/mais-quente-do-que-o-ano-passado-sim-quanto-depende-da-medida-pesquisadores-explicam-aumento-do-calor-no-acre-e-alertam-sobre-o-futuro/. Acesso: 2out23.

[1] https://www.engineeringtoolbox.com/water-properties-d_1573.html.  1 cal /g/ oC x 33 oC x 1 g / ml x 300 ml = 9.900 calorias x Caloria/1000 calorias = 9,9 Calorias; 576.4 cal / g (@37 oC) x 1 g /ml x 300 ml = 173.000 calorias x Caloria/1.000 calorias = 173 Calorias.

[1]Cvijanovic, I., et al. 2023. Importance of humidity for characterization and communication of dangerous heatwave conditions. npj Climate and Atmospheric Science 6, 33. https://doi.org/10.1038/s41612-023-00346-x.

[1] Stull, R., 2011. Wet-bulb temperature from relative humidity and air temperature. Journal of Applied Meteorology and Climatology 50, no. 11: 2267-2269.

[1] Sherwood, S.C. and Huber, M., 2010. An adaptability limit to climate change due to heat stress.  Proceedings of the National Academy of Sciences107(21), pp.9552-9555.  https://www.pnas.org/doi/abs/10.1073/pnas.0913352107

[1] Vecellio, D.J. et al. 2022. Evaluating the 35 C wet-bulb temperature adaptability threshold for young, healthy subjects (PSU HEAT Project). Journal of Applied Physiology132(2), pp.340-345. https://journals.physiology.org/doi/full/10.1152/japplphysiol.00738.2021

[1] Cvijanovic, I., et al. 2023. Importance of humidity for characterization and communication of dangerous heatwave conditions. npj Climate and Atmospheric Science 6, 33.

[1] https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ac/pesquisa/18/16532. Acesso: 2out23.

[1] da Silva, W. C. et al. 2023. Evaluation of the temperature and humidity index to support the implementation of a rearing system for ruminants in the Western Amazon. Frontiers in Veterinary Science 10.

[1] https://ac24horas.com/2023/09/30/morte-de-peixes-no-rio-amonia-atinge-aldeia-e-abastecimento-de-agua-em-cidade-do-acre/.  Acesso: 2out23.

[1] Yin, J. et al. 2023. Future socio-ecosystem productivity threatened by compound drought–heatwave events. Nature Sustainability 6, 259–272.  Ciais, P. et al. 2005. Europe-wide reduction in primary productivity caused by the heat and drought in 2003. Nature 437, 529–533. https://doi.org/10.1038/nature03972.

[1] https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2023/09/27/por-conta-de-estiagem-rio-branco-decreta-situacao-de-emergencia-em-areas-que-sofrem-com-desabastecimento.ghtml.  Acesso: 2out23.

[1] https://www.woodwellclimate.org/climate-risk-assessment-belem-para-brazil/. Acesso: 2out23.

[1]Xu, Chi, et al. 2020. Future of the human climate niche. Proceedings of the National Academy of Sciences 117.21: 11350-11355.

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