Minha mãe tinha uma amiga com quem sonhei essa noite. Ela era dentista, nos encontrávamos pelo menos uma vez por semana. Garanhuns não era uma cidade tão grande e o consultório da amiga ficava a poucos metros do de minha mãe. Estávamos, minha irmã e eu, sempre no consultório de minha mãe. Fora a geografia favorável, frequentamos a mesma escola da filha da amiga, e ela aparecia vez por outra para um jantar ou um café lá em casa. Nunca vi a amiga de sandália rasteira, sapatilha ou tênis. Olívia só andava de salto. E agora fiquei tentando lembrar o que levava nos pés quando o encontro era um churrasco ou um banho de piscina. Tenho quase certeza, mas posso estar inventando, que eram tamancos plataforma. Desses de torcer o tornozelo.
Pois foi dela que ouvi um conselho de que nunca esqueci. Não porque o tenha seguido, mas pelo absurdo da ideia. Por usar saltos até em churrasco – já me convenci dos tamancos -, Olívia caía com alguma frequência. Ocorre que não era vaidosa somente no quesito sapatos, tinha as saias de couro mais memoráveis da infância, uma variedade sem fim de tons de meia-calça, blusas e babados, pulseiras, brincos e colares, colares, colares. Tinha também o desejo não só de parecer, mas de ser impecável. Impecáveis estão sempre de pé, eu imagino que pensava. Portanto a queda representava mais do que só uma queda, era como o maior de todos os pecados, ainda mais se pública.
O conselho: se você tropeçar, cair no chão, se espatifar diante de um outro – e não precisa ser uma multidão não, pode ser uma única pessoa -, finja um desmaio. Com o tempo, o corpo aprende e, quando menos se espera, o desmaio passa a ser real. Cai, desmaia, de verdade mesmo. Os que presenciam a cena, não se darão o tempo da risada nem da curiosidade, tamanha a urgência de socorrer o desmaiado. O que desmaia não se dará o tempo da vergonha, nem da raiva de desequilíbrio, tamanha a urgência de voltar a consciência. E tem mais, ela acrescentava, você não terá o desprazer de se ver desmontada, porque pior do que ser vista em desequilíbrio é ter essa visão de si. Um pé pra um lado, o outro para o outro, um joelho ralado, uma bolsa solta, com as chaves e os papéis ocupando a calçada.
Em 2021, quando levei aquela queda coletiva e quebrei a mão, lembrei de Olívia. Ano passado, quando fui atropelada, também. Não desmaiei em nenhuma das ocasiões, grande ufa. E conto essa história pra gente pensar sobre o quanto podemos ter a sensação de que estamos nos colocando maiores – nos saltos da vida – enquanto, na verdade, nos convidamos a um certo encolhimento a partir do olhar do outro. Dá pra rir junto, com quem nos vê em queda, dá pra lembrar que caímos todos, dá pra pedir ajuda sem precisar chegar na urgência. Que a gente se enfeite pra se divertir, não pra se esconder, se apagar, desmaiar. Quanto mais acordados, melhor. Boa semana, queridos.