Acampar durante duas semanas nas margens lamacentas e infestadas de mosquitos do rio Kolyma, na Rússia, pode não parecer a mais glamorosa das viagens de trabalho. Mas é um sacrifício que o virologista Jean-Michel Claverie estava disposto a fazer para descobrir a verdade sobre os vírus zombies – mais um risco que as alterações climáticas representam para a saúde pública.
As suas descobertas lançam luz sobre a sombria realidade do aquecimento global, à medida que este descongela solos que estavam congelados há milénios. Claverie, 73 anos, passou mais de uma década estudando vírus “gigantes”, incluindo aqueles com quase 50 mil anos encontrados nas profundezas das camadas do permafrost da Sibéria.
Com o planeta já 1,2°C mais quente do que nos tempos pré-industriais, os cientistas preveem que o Ártico poderá ficar sem gelo nos verões até 2030. As preocupações de que o clima mais quente irá libertar gases com efeito de estufa retidos, como o metano, na atmosfera, à medida que o permafrost da região derrete, foram bem documentadas, mas os agentes patogênicos latentes são um perigo menos explorado. No ano passado, a equipa de Claverie publicou uma investigação que mostrava que tinham extraído vários vírus antigos do permafrost siberiano, todos eles infecciosos.
— Com as alterações climáticas, estamos habituados a pensar em perigos que vêm do sul — disse Claverie numa entrevista no seu laboratório no campus Luminy da Universidade de Aix-Marseille, França, referindo-se à propagação de doenças transmitidas por vetores de regiões tropicais mais quentes.
— Agora, percebemos que pode haver algum perigo vindo do norte, à medida que o permafrost descongela e liberta micróbios, bactérias e vírus — afirma.
Ainda estão surgindo formas pelas quais isso pode representar uma ameaça. Uma onda de calor na Sibéria no verão de 2016 ativou esporos de antraz, causando dezenas de infecções, matando uma criança e milhares de renas. Em Julho deste ano, uma equipa separada de cientistas publicou descobertas que mostram que mesmo organismos multicelulares poderiam sobreviver às condições do permafrost num estado metabólico inativo, chamado criptobiose. Eles reanimaram com sucesso uma lombriga de 46 mil anos do permafrost siberiano, apenas reidratando-a.
— É fundamental do ponto de vista de que podemos parar a vida e depois reiniciá-la — diz Teymuras Kurzchalia, professor emérito do Instituto Max Planck de Biologia Celular e Molecular e Genética, que esteve envolvido no estudo — Isso significa que é inato a alguns organismos vivos diminuir ou suspender de alguma forma os processos metabólicos — explica.
Durante anos, as agências de saúde globais e os governos têm monitorizado doenças infecciosas desconhecidas contra as quais os humanos não teriam imunidade nem terapias medicamentosas. A Organização Mundial da Saúde adicionou em 2017 uma “Doença X” genérica a uma lista de agentes patogênicos considerados de alta prioridade para investigação e para os quais pretende desenvolver um roteiro para prevenir ou conter uma epidemia. Desde que a pandemia de Covid-19 fechou o mundo durante meses, os esforços apenas se intensificaram.
“A OMS trabalha com mais de 300 cientistas para analisar as evidências sobre todas as famílias virais e bactérias que podem causar epidemias e pandemias, incluindo aquelas que podem ser libertadas com o degelo do permafrost”, disse a porta-voz da OMS, Margaret Harris.
Claverie mostrou pela primeira vez que vírus “vivos” poderiam ser extraídos do permafrost siberiano e revividos com sucesso em 2014. Por razões de segurança, sua pesquisa se concentrou apenas em vírus capazes de infectar amebas, que estão suficientemente distantes da espécie humana para evitar qualquer risco de contaminação inadvertida, mas ele sentiu que a escala da ameaça à saúde pública que as descobertas indicaram foi subestimada ou erroneamente considerada uma raridade.
Assim, em 2019, a sua equipe isolou 13 novos vírus, incluindo um congelado debaixo de um lago há mais de 48.500 anos, a partir de sete amostras diferentes do antigo permafrost siberiano. Ao publicar as descobertas num estudo de 2022, ele enfatizou que uma infecção viral de um patógeno antigo e desconhecido em humanos, animais ou plantas poderia ter efeitos potencialmente “desastrosos”.
— 50 mil anos atrás no tempo nos levam à época em que o Neandertal desapareceu da região. Se os neandertais morressem de uma doença viral desconhecida e este vírus ressurgisse, poderia ser um perigo para nós —explica o cientista.
O permafrost, solo que já foi repleto de vida animal, oferece as condições perfeitas para a preservação da matéria orgânica: é natural, escuro, desprovido de oxigênio e permite muito pouca atividade química. Na Sibéria, pode atingir até um quilómetro de profundidade — o único lugar no mundo onde o permafrost desce tão longe – e cobre cerca de dois terços do território russo. Descobriu-se que apenas um grama abriga milhares de espécies de micróbios adormecidos, de acordo com um artigo publicado na revista Nature em 2021.
Durante 400.000 anos, as camadas subjacentes do permafrost permaneceram em grande parte estáveis. Tanto é verdade que cidades russas surgiram em toda a Sibéria, perfurando profundamente as suas fundações no solo congelado. Mas agora, com o Ártico a aquecer mais rapidamente do que qualquer outra área do planeta, abriram-se vastas crateras de metano em toda a região e cidades inteiras podem afundar.
Mais recentemente, a geopolítica criou novos pontos cegos. Organizar viagens à Sibéria e colaborar com laboratórios russos não era fácil, mesmo antes de a Rússia invadir a Ucrânia em Fevereiro de 2022. Mas as comunicações com antigos colegas e colaboradores no país estão praticamente interrompidas. O laboratório de Claverie, juntamente com muitos outros em todo o mundo ocidental, são financiados pelo governo.
Os efeitos do aquecimento global na Sibéria representam riscos e recompensas para a economia russa. Estima-se que o degelo do permafrost esteja a colocar em risco infraestruturas no valor de cerca de 250 mil milhões de dólares e já se pensa que tenha contribuído para desastres ambientais como o derrame de petróleo de Norilsk em 2020, à medida que o solo se torna instável.
No entanto, a região também possui uma riqueza de recursos naturais — carvão, gás natural, ouro, diamantes e minério de ferro. Ao contrário de outras regiões cobertas de permafrost, como o Alasca e a Groenlândia, Claverie diz que a Rússia tem sido mais ativa na mineração destes solos: “Estão a cavar buracos por todo o lado”.
Alguns cientistas também temem que a tecnologia — como a central nuclear flutuante da Rússia, Akademik Lomonosov — possa transformar áreas anteriormente inacessíveis ao longo da costa da Sibéria em centros mineiros, à medida que as rotas sem gelo através do Círculo Ártico aumentam a acessibilidade. A exploração destas profundidades mais profundas, para além da camada ativa que descongela todos os verões, aumentaria a possibilidade de interação humana com um antigo agente patogenico potencialmente prejudicial, diz Claverie.
Isto também sublinha o dilema intrínseco à investigação — que caçar a próxima grande ameaça para a humanidade poderia inadvertidamente propagar o perigo. O potencial de contaminação cruzada durante expedições de amostragem é alto. Como tal, alguns estão a começar a defender abordagens menos proativas e que necessitam de recursos.
— Seria bom estabelecer uma forma especializada de acompanhar a população Inuit, por exemplo, para ver que tipo de doenças eles contraem. E se houver algo vindo do permafrost, seremos capazes de capturá-lo muito mais rapidamente — diz Claverie.
As grandes organizações também estão a acordar para este risco. No início deste mês, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional abandonou o seu projeto de 125 milhões de dólares para caçar vírus no Sudeste Asiático, África e América Latina que poderiam potencialmente infectar seres humanos, devido a preocupações de que a própria investigação pudesse desencadear uma pandemia.
Entretanto, Claverie não regressará à Sibéria, independentemente do resultado da guerra. Ele diz que afirmou que o perigo existe e que expedições para descobrir mais segredos enterrados nessas profundezas congeladas seriam uma loucura.
— Quanto mais velho você fica, melhor você se torna em filosofia. Talvez seja melhor deixar essas coisas de lado — afirma.