Por Brenna Amâncio
Era uma terça-feira comum. Aquele parecia mais um dia para lutar pela sobrevivência. Sayonara Filgueiras da Silva Santos, com apenas 32 anos de idade, já enfrentava o amargor de viver com uma grave doença no fígado. Apenas um novo órgão poderia mantê-la viva, e esse diagnóstico da equipe médica a levou para a fila de transplante.
Aquela terça-feira, dia 17 de outubro de 2023, ficaria na memória, porque foi quando Sayonara e a família receberam a notícia mais aguardada de todas: havia, finalmente, um fígado pronto para o transplante. A espera chegava ao fim.
Moradora de Sena Madureira, Sayonara Santos passou meses, entre idas e vindas à capital Rio Branco, para consultas e exames na Fundação Hospital Estadual do Acre, a Fundhacre. E, em todos os momentos, teve o apoio incondicional da companheira Karla Geane Farias de Lima, com quem vive há 13 anos.
Um dia após a cirurgia, Sayonara respondia, positivamente, ao transplante. No hospital, ao lado de fora do quarto, estava Karla, vivendo um misto de felicidade e emoção.
“Uma sensação maravilhosa saber que minha parceira vai melhorar, vai ter uma qualidade de vida melhor. Após um ano e seis meses de muita luta, de vê-la sofrendo, chorando com dor, de vir passar até 15 dias aqui com ela e achar que ela não sobreviveria… É um sonho vê-la, hoje, transplantada, é um sonho que Deus realizou”.
Fundhacre é referência na região Norte
No Acre, o hospital com suporte para a realização de transplantes é a Fundhacre, que foi credenciada para realizar três modalidades desse tipo de cirurgia: de fígado, de rim e de córnea. O serviço é fornecido para pacientes referenciados via Sistema Único de Saúde de todo Brasil.
Atualmente, a unidade de saúde é a única da região Norte habilitada para o transplante de fígado, devido à complexidade do procedimento. A sobrevida geral dos pacientes transplantados também é uma referência.
Inclusive, 2023 foi um ano recorde para a Fundhacre. Até agora, o Estado realizou 15 transplantes de fígado. Outras 202 pessoas permanecem na fila de espera, e, dessas, 22 já estão aptas para o transplante, neste momento, mas falta o órgão doado.
O Ministério da Saúde concedeu, no segundo semestre deste ano, a renovação da habilitação por mais quatro anos para a Fundhacre voltar com os transplantes de córnea, porém, os de rim seguem suspensos até que a análise seja concluída.
Para que tudo isso possa fluir bem, é preciso que haja um esforço conjunto entre governo, equipe e gestão do hospital. É o que explica a coordenadora de Serviços de Transplante da Fundação, Valéria Monteiro.
“O sucesso do nosso programa relaciona dois fatores: o empenho de uma gestão, de um governo; e o empenho de uma equipe multidisciplinar, uma equipe de cirurgia muito experiente. Podemos dizer que temos, hoje, nesse serviço, no Acre, um dos melhores cirurgiões do país, que é o dr. Tércio Genzini, chefe da equipe”.
Em média, por mês, são realizados 196 atendimentos médicos aos pacientes nos ambulatórios de transplante hepático, 62 no ambulatório de transplante renal e 48 no ambulatório de transplante de córnea, totalizando 306 consultas médicas, além do atendimento da equipe multidisciplinar de enfermagem e psicologia.
Fila de espera para transplantes de órgãos no Acre:
ÓRGÃO | DOENTES CRÔNICOS | APTOS AO TRANSPLANTE |
Fígado | 180 | 22 |
Rim | 540 | 182 |
Córnea | 135 | 135 |
*Os dados são da Coordenação de Serviços de Transplante da Fundhacre, contabilizados até 20 de outubro de 2023.
Quebrando o tabu
Uma das razões para a recusa dos parentes em doar órgãos é a falta de conhecimento sobre o que é a morte encefálica, um processo “absolutamente irreversível”, segundo Valéria Monteiro.
“Os doadores para órgãos sólidos precisam ser pessoas que estejam em morte cerebral e, infelizmente, ainda existe muita lenda urbana em relação a isso, que atrapalha o processo de doação. No nosso estado, a taxa de doação ainda é muito baixa; 90% dos transplantes realizados no Acre são por doação externa, de outros estados”, lamenta a coordenadora.
Quando uma pessoa tem morte encefálica, a família fica muito abalada pela perda repentina. Dificilmente, consegue tomar uma decisão tão delicada como doar os órgãos de um ente querido. Por isso é tão importante as famílias conversarem sobre esse assunto de forma aberta. Quebrar o tabu.
“A gente entende que, no momento da dor, do luto, é difícil mesmo pensar em doação. Se a doação não for algo sobre o que aquela família já tenha conversado, fica difícil mesmo doar. Por isso, a importância de falarmos sobre esse assunto, pensar, de algum modo, em ressignificar a dor em algo positivo, que pode ser a doação para viabilizar um transplante e salvar a vida de alguém”.
Foi o aconteceu com a Sayonara, uma das pessoas que ganhou uma nova vida, graças ao transplante de fígado realizado na Fundhacre, este ano. A companheira dela, Karla Geane, conta que também tinha um “pensamento fechado” em relação à doação de órgãos, mas isso mudou. Até porque, caso não fosse a conscientização da família doadora, a Sayonara ainda estaria na fila de espera por tempo indeterminado. E o tempo, nesses casos, é muito valioso.
“Antes de tudo isso, eu tinha comigo que, se eu tivesse um filho, e ele chegasse a morrer, eu ficaria em dúvida se doaria os órgãos. Mas, hoje mudei minha cabeça, porque sei que um fígado, um coração, um rim pode salvar uma vida”, relata.
Sistema confiável e seguro
O tema doação de órgãos voltou a ficar em evidência, este ano, após o apresentador de televisão Fausto Silva passar por um transplante cardíaco de forma ágil, o que levantou um debate, no país inteiro, sobre possíveis privilégios dados ao artista. Mas, afinal, o Faustão furou ou não a fila?
A coordenadora de Serviços de Transplante da Fundação, Valéria Monteiro, garante que não.
“Não tem como. Se tem um sistema, hoje, que é confiável é o sistema de transplante. A distribuição do órgão é regionalizada, mas a fila é única e nacional. Para entrar na fila, o paciente vai depender do órgão, porque cada órgão tem o seu critério. No caso dele, que foi do coração, e também em relação ao fígado, existe o critério de gravidade da doença. No caso do fígado, existe um cálculo que o próprio sistema faz, com exames laboratoriais específicos que a gente lança e que vai dar uma taxa, que vai indicar a gravidade da doença e a taxa de mortalidade em três meses”, explica.
Ou seja, o sistema que gerencia a fila de espera para transplante é seguro. E, no Acre, há um trabalho feito com excelência pela equipe da Fundhacre e colocado como prioridade pelo Governo do Estado. Trabalho conjunto que salva vidas.
Para Valéria Monteiro, é gratificante acompanhar os pacientes retomando suas vidas.
“É impagável”, emociona-se.