Os desafios para enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres no Brasil. Eis o tema da redação do Enem. Não quero falar de nenhum outro assunto que não seja este. Ao mesmo tempo, penso que os textos dos mais de dois milhões e oitocentos mil candidatos que fizeram prova ontem são certamente mais relevantes do que qualquer coisa que eu escreva. Destes, 60% são mulheres. Na minha matemática indigna de Enem, ontem, mais de um milhão e cem mil homens precisaram parar pra pensar no invisível. Mais do que isso, precisaram dizer do invisível.
Ontem, mais de um milhão e cem mil homens precisaram dizer do invisível com domínio da língua portuguesa e sem desvios. Ontem, mais de um milhão e cem mil homens precisaram dizer do invisível sem tangenciar ou fugir do tema. Ontem, mais de um milhão e cem mil homens precisaram dizer do invisível defendendo um ponto de vista com informações, fatos e opiniões de forma consistente e organizada. Ontem, mais de um milhão e cem mil homens precisaram dizer do invisível usando repertório sobre o tema. Ontem, mais de um milhão e cem mil homens precisaram dizer do invisível apresentando propostas coerentes e soluções plausíveis para o problema.
Às mães no portão das escolas onde a prova foi aplicada, às que correram pra comprar o lanchinho e a água no dia anterior, às que passaram na papelaria pra garantir lápis e caneta, às que perguntaram se o RG estava mesmo na mochila, às que lembraram do casaquinho, “vai que tem ar condicionado na sala”, às que sentaram pra fazer a inscrição com os filhos, às que colaram calendário de prova na geladeira, às que calcularam o horário de sair de casa, às que estiveram junto na angústia da escolha, às que insistiram no cursinho, às que foram nas reuniões da escola, às que disseram “vai lá, tu dá conta”, às que eram tomadas de assalto por uma ideia de tema de redação no meio do expediente, às que mandaram whatsapp pro filho dizendo da ideia, às que se seguraram pra não mandar, “vai que pressiona a criança”, às que tiveram medo de estar presente demais, “não são mais crianças”, às que tiverem medo de estar de menos, a aquela que abraçou o menino que saiu chorando ontem e disse que “vai ficar tudo bem”, a aquela outra que segurou o choro quando deixou a menina na sala, à que me disse que ia esperar ali mesmo, a prova terminava às 19h, eram 12h30, à que foi dar beijo de boa noite no sábado e largou um “eu confio em tu”, à minha mãe, que colocou um terço, um batom garoto e, sabendo que eu não era religiosa, um duende (!) no meu estojo no ano que eu fiz vestibular e ainda sabia fazer conta, às mais de um milhão seiscentos e oitenta mil mulheres que também fizeram essa prova meu bom dia. Falta muito, minha gente, mas estamos caminhando.