Ultraliberal comparado a Trump e Bolsonaro defende redução drástica do Estado, tem vice que contesta crimes da ditadura militar e já provocou questionamentos sobre sua saúde mental e comprometimento com a democracia.
Em meio a uma profunda insatisfação da população com a situação econômica na Argentina e desgaste do peronismo, o deputado ultraliberal populista Javier Milei venceu neste domingo (19/11) o segundo turno da eleição presidencial, provocando uma reviravolta dramática no cenário político do país.
Fenômeno dessas eleições, o economista Milei, da coalizão partidária personalista A Liberdade Avança, chegou à Casa Rosada fazendo uso de um discurso antissistema, acabando por ser o principal beneficiário da impopularidade do governo do atual presidente, o peronista Alberto Fernández. Com 53 anos, Milei foi regularmente comparado durante a campanha ao americano Donald Trump e ao brasileiro Jair Bolsonaro, políticos de ultradireita que viraram o mundo político do avesso em seus países.
Ascensão
Desde que despontou no cenário político, a partir de 2016, Milei se destacou pelo uso de uma retórica agressiva e provocativa contra a classe política tradicional, a quem culpa pela ruína econômica do país, tentando se apresentar como outsider.
Ex-músico de uma banda de rock, ex-jogador de futebol na juventude, economista de formação, Milei começou a ganhar tração no espaço público em 2016, como comentarista de televisão e defensor de princípios “libertários”.
A estreia ocorreu num canal controlado pelo bilionário argentino de origem armênia Eduardo Eurnekian, dono do conglomerado de mídia e aeroportos Corporación América, para o qual Milei trabalhou por mais de uma década.
Em 2021, Milei foi eleito pela primeira vez como deputado. Foi pouco atuante na Câmara – não propôs projetos ou participou de comissões –, usando mais o cargo como plataforma para se lançar à presidência da Argentina.
Campanha
A tática rendeu frutos, e Milei se tornou um dos assuntos mais comentados da eleição presidencial. Sua ascensão nas pesquisas se deveu em parte ao eleitorado mais jovem da Argentina, que se sentiu atraído por sua agenda antissistema e que mostrava cansaço com décadas de má administração. Suas aparições de campanha foram marcadas por gestos teatrais, como empunhar uma motosserra e puxar coros de xingamentos contra adversários. Nas primárias de agosto, foi o candidato mais votado.
No primeiro turno presidencial, em outubro, terminou quase sete pontos atrás do ministro peronista Sergio Massa, candidato da coligação União pela Pátria (UP). A segunda colocação decepcionou alguns apoiadores, mas o resultado não deixou de ser um passo divisor na política argentina, marcando a chegada ao segundo turno presidencial de um nome relativamente novato na política. A grife de direita mais radical de Milei ainda conseguiu tomar o espaço dos conservadores tradicionais do país, ligados ao ex-presidente Mauricio Macri, que no primeiro turno foram representados por Patricia Bullrich, que amargou um terceiro lugar após liderar uma campanha essencialmente focada no combate ao crime.
No segundo turno, os conservadores Macri e Bullrich apoiaram ativamente Milei, provocando um racha na coalizão Juntos pela Mudança (JxC).
“Ele [Milei] não é um líder, é um sintoma” da sociedade argentina, analisou o ex-ministro da Economia Domingo Cavallo. “Ele é um grande comunicador que serviu como um canalizador para todos aqueles insatisfeitos com a democracia, a política e a economia”, resumiu Juan Luis González, autor de uma biografia crítica de Milei, chamada El Loco (O louco), ao jornal La Nación.
Anarcocapitalismo, clones e venda de órgãos
Milei defende o porte de armas de fogo, é contra o aborto e a educação sexual nas escolas e considera as mudanças climáticas “uma farsa”. Ele também se associou com apologistas da última ditadura do país (1976-1983). Sua vice é Victoria Villarruel, que tem histórico de questionar os sangrentos crimes cometidos pelos militares. Durante a campanha, tal como Trump e Bolsonaro, ele também passou a denunciar sem provas que o pleito corre o risco de ser “fraudado”.
Mas em outros aspectos Milei é exótico até para padrões da ultradireita mundial. Segundo o biógrafo González, Milei se “aconselha” politicamente com o espírito de um de seus cachorros mortos, com intermédio de uma médium, além de ter encomendado clones do animal. Em agosto, ao terminar as primárias na primeira colocação, dedicou o resultado aos “filhos de quatro patas”.
“Estamos falando de uma pessoa que toma decisões com base em um gabinete formado por cães clonados, que se considera escolhido por Deus, que afirma dialogar com Deus e ver Deus. Sua instabilidade é realmente preocupante”, disse o biógrafo González ao La Nación.
Milei também já defendeu que os argentinos deveriam ter permissão para vender seus órgãos e defendeu durante a campanha a extinção do Banco Central da Argentina e de diversos ministérios. Após as primárias de agosto, ele classificou a ideia de justiça social como uma “aberração”.
Ao longo da campanha, sua principal proposta foi adotar um regime de dolarização agressivo, efetivamente extinguindo o peso argentino e adotando a moeda americana no país. Milei também defendeu reduzir drasticamente o tamanho do Estado argentino, cortando gastos e a ampla rede de subsídios sociais do país. Ideologicamente, ele se define como “libertário” e “anarcocapitalista”.
Mas o autoproclamado libertarianismo de Milei já foi apontado por críticos como uma mera roupagem para esconder uma natureza de extrema direita. Pouco antes do primeiro turno, o brasileiro Jair Bolsonaro chegou a enviar uma mensagem em vídeo de apoio ao argentino. “Não podemos continuar com a esquerda. É um apelo que eu faço a todos os argentinos: vamos mudar, e mudar para valer, com Milei”, disse Bolsonaro na mensagem.
Boa parte do debate político na campanha Argentina também foi pautado pelas ideias radicais de Milei, sobrando pouco espaço para propostas de outros candidatos.
Autor: Jean-Philip Struck