A engenheira civil Keicia Nolasco, de 26 anos, diagnosticada com os transtornos do Espectro Autista (TEA), pânico e ansiedade generalizada, tem a companhia de uma cadela de serviço multifunção, a Nala Maria, para auxiliá-la nas tarefas diárias.
Atividades que podem parecer simples para o restante da população, como ir ao supermercado ou visitar uma loja de departamento, por exemplo, para Nolasco são extremamente complicadas ou inviáveis sem a ajuda do animal.
Recentemente vinda de Brasília para capital acreana, a jovem relata ter passado por momentos de estresse e distrato ao tentar fazer compras em dois grandes supermercados de Rio Branco. Isso porque os estabelecimentos não permitiram a entrada do cão de serviço, mesmo a engenheira tendo permissão legal para adentrar nesses espaços com o animal.
“A gerente de um dos supermercados me fez passar o maior constrangimento no meio do mercado, se negou a ver a lei, disse que lei nenhuma está acima das normas do mercado. Mandou eu me retirar”, relata.
“Já na loja de departamentos, o guarda se negou a deixar eu entrar. Tive que ficar um tempão esperando a gerente me ceder o ‘favor’ de entrar”, continua.
“No outro supermercado, quando falei a situação, imediatamente sumiram e não me responderam mais. Não consigo ir, por medo de passar o que passei no primeiro”, lamenta Nolasco, que vive, ainda, com os transtornos de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e de estresse pós-traumático.
Ela pontuou ainda que precisou falar com um dos “grandes gerentes” de um dos estabelecimentos para conseguir entrar no espaço e realizar as atividades planejadas. A jovem revela estar receosa de realizar certas atividades sozinha neste retorno ao Acre, pois não sabe como será a receptividade dos estabelecimentos.
“Por enquanto, só aconteceram essas situações, porque ainda não deu tempo de [acontecerem] mais. Faz pouco mais de duas semanas que cheguei aqui, então os únicos lugares que fui, foram esses. Ainda não fui a restaurantes ou outros lugares e sinceramente não sei como vai ser”, explicou a engenheira.
No Acre, existe uma lei (nº 3.968/2022) que ampara o uso de cães de terapia ou assistência. O teor afirma que impedir este direito configura discriminação contra a pessoa que necessita desse apoio.
No artigo primeiro, fica permitida a entrada de cão de terapia ou de assistência, devidamente acompanhado, em casas de longa permanência, escolas, hospitais públicos e privados, estabelecimento comercial, industrial, de serviço ou de promoção, proteção e recuperação da saúde, desde que observadas as condições impostas por esta lei e sua regulamentação.
A lei 13.146, de 2015, prevê pena de até três anos para quem violar os direitos e liberdades de pessoas com deficiência, considerada, pela legislação, quem possui algum tipo de impedimento, de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.
Estereótipos e Preconceito
Deficiências invisíveis, entre elas o TEA, muitas vezes só são encaradas com mais seriedade e respeito, quando aparecem de maneira estereotipada, seguindo o que é socialmente esperado para aquele transtorno ou deficiência.
No autismo, entre os principais traços considerados estereótipos estão a dificuldade de comunicação e interação social, atraso no desenvolvimento motor, hipersensibilidade sensorial e comportamentos metódicos ou repetitivos.
Entretanto, nem todo autista apresenta esses comportamentos, seja na infância, onde normalmente ocorre a identificação e diagnóstico, ou na vida adulta. Em entrevista ao G1, Lui Valverde, morador do Interior de São Paulo, de 24 anos, que foi diagnosticado já na vida adulta, esclarece:
“Acontece muito de quererem explicar que eu não sou ‘autista mesmo’ por isso ou aquele motivo, basicamente, querendo me explicar o autismo com um monte de estereótipos. (Falam do autismo para mim) comentando de algum ‘primo de vizinho de uma conhecida’ que é autista não verbal e que, aí sim, é autista de verdade”.
Valverde diz ainda que evita, por muitas vezes, utilizar seus direitos, justamente pelo preconceito envolto no tema, como se ele não fosse “autista de verdade” para fazer o uso de filas preferenciais, por exemplo.
“Cria-se uma cultura de sofrimento. Muitas vezes, prefiro não utilizar um serviço preferencial a qual eu tenho direito, pois o estresse de ter que lidar com a falta de informação e agressividade das pessoas acaba sendo pior. Também porque vira algo a ser escondido, como se as pessoas quisessem que eu fingisse não ser autista”, explica o jovem.