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Transexuais revelam barreiras e preconceitos para serem aceitas no mercado de trabalho

Ascom MP-AC

REPORTAGEM POR Walace Gomes, estagiário sob supervisão.

O Brasil está no topo da lista dos países que mais matam transexuais no mundo. Tanto ódio e preconceito acarretam grandes problemas sociais, que ainda não são debatidos e tratados como deveriam. Segundo informes divulgados entre os anos de 2021 a 2022, pela Transgender Europe (TGEU) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 221 pessoas trans foram assassinadas no país, sendo que 95% dos assassinatos envolveram mulheres trans. Outro dado alerta para a importância do assunto ser abordado, 36% dos homicídios ocorreram nas ruas e 24% nas próprias residências, sendo uma morte a cada 34 horas. 

Entre 2021 e 2022, o Acre registrou um assassinato, o da transexual Fernanda Machado da Silva, morta a pauladas, acusada de furtar um aparelho telefônico. As dificuldades vivenciadas por essa comunidade se refletem também em outras áreas, como o mercado de trabalho, que acaba excluindo os profissionais transgêneros. A cada quatro pessoas trans, uma está desempregada, totalizando 20% da população transexual fora do mercado de trabalho formal, conforme dados da pesquisa da Antra. 

Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 31 mil acreanos sofrem com o desemprego. E entre a comunidade LGBTQIA+*, as pessoas trans são as mais afetadas. Muitas participam de seleções por telefone, mas, quando chegam pessoalmente, os recrutadores dão desculpas para não realizarem a entrevista. No entanto, mesmo diante das dificuldades, estas pessoas transcendem, mostram que ocupar posições no mercado de trabalho é possível, tornando a inserção e a conquista de empregos formais uma realidade que gradativamente vem sendo alcançada com êxito e as barreiras da informalidade rompidas.

Coragem, resiliência e amor

No Acre, a primeira servidora trans contratada pelo Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), Rubby Rodrigues, colabora na instituição, desde 2017. Ao longo de sua história, Rubby sempre teve de enfrentar os estigmas negativos relacionados a ela. Candomblecista, trans e mulher preta, ela é acostumada a conviver com os julgamentos que caracterizam o conservadorismo e o preconceito ainda presentes na sociedade.

Foto: Ascom DPE- AC

Coragem, resiliência e amor são as três palavras que definem Rubby Rodrigues. Mas nem sempre foram só vitórias. Rubby já precisou se prostituir e, consequentemente, foi entrando no mundo das drogas, e, segundo ela, por meio da religião e com a força do Orixá Exu, do qual é filha, a fé foi abrindo novos horizontes e perspectivas em sua vida. “Através da religião,  eu consegui me livrar de muitas coisas ruins. A minha religião é a minha fé, que hoje carrego com muito orgulho, mesmo que seja uma missão que precisou de muito sangue derramado, não só meu, como também dos meus iguais. Encontrei na Umbanda e Candomblé uma religião que me acolheu do jeito que eu sou”, destaca.

Trabalhadora, começou na labuta aos nove anos, com a venda de geladinhos e verduras. No Ministério Público, atualmente, atua com o atendimento junto à equipe multidisciplinar do Centro de Atendimento à Vida, o CAV, onde se dedica ao atendimento às demandas da população LGBTQIA+. Embora se sinta numa posição de privilégio pelo cargo que exerce, os preconceitos ainda são constantes. Já chegou a ser impedida de entrar em uma festa na qual mulheres não pagavam, por não a considerarem uma, e até sofreu transfobia ao não poder utilizar o banheiro feminino de uma empresa. 

A servidora do MPAC mora no bairro Baixada da Sobral, uma região periférica da Capital, e foi lá que protagonizou um capítulo importante na história do movimento transexual do Acre. Após sofrer uma tentativa de homicídio pelo ex-companheiro, Rubby foi a primeira mulher trans a ter a Lei Maria da Penha aplicada a favor dela no estado, tornando-se uma marca viva de respeito. Há apenas três anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) equiparou comportamentos discriminatórios e preconceituosos contra a população LGBTQIA+ ao racismo (Lei 7.716/89), reconhecendo a omissão inconstitucional do Legislativo em não editar lei que criminalize a homofobia e a transfobia. 

Desde então, é empenhada a acolher pessoas que, como ela, foram vítimas de crimes contra a mulher ou que tenham motivação homofóbica. Em palestra realizada no mês de janeiro pela Defensoria Pública do Estado do Acre, Rubby destacou ser importante que as pessoas transgêneros ocupem o mercado de trabalho formal e que todos possam ser respeitados e terem seus direitos garantidos.

Ufac de portas abertas 

Michele Franco sempre soube que não se encaixava no padrão cisgênero, condição de  identidade que corresponde ao gênero atribuído no nascimento no qual estava inserida. E foi durante a graduação no curso de Ciência e Tecnologia de Alimentos, que ela se descobriu como uma mulher trans. Aos 30 anos, Michele é servidora técnica administrativa da Universidade Federal do Acre (Ufac). Mas, até chegar ao concurso, passou por várias situações de preconceito, sendo o seu maior embate o mercado de trabalho na iniciativa privada.

Foto: Ingrid Souza

Ela teve que enfrentar transfobia, e conta que um dos momentos mais marcantes em sua vida como mulher trans foi quando, no último dia como estagiária, reportou tais perseguições a sua chefe, que também lhe revelou passar pelo mesmo. “Conversei com a minha chefe e falei para ela que foi muito difícil a convivência com os homens, eles não conseguiam me obedecer, eles não me respeitavam como profissional. E ela falou que isso era uma dificuldade que ela, uma mulher cis, também passava e que eu tinha de estar preparada para aquilo no mercado trabalho. Sempre as mulheres são alvo de desconfiança quando ocupam algum cargo de poder’’. 

Pela falta de políticas de inclusão e até entendimento sobre o assunto diversidade, esses colegas de trabalho praticavam misoginia contra Michele. “Foi bem difícil trabalhar na iniciativa privada, mas também foi o que me ajudou a melhorar e estudar para concurso público, pois me daria uma segurança maior. Passei no concurso da Universidade Federal do Acre, e já trabalho na Ufac há doze anos, fui muito bem acolhida e sinto um respeito muito grande tanto por parte dos professores, quanto dos alunos. Executo minhas atividades em um ambiente de trabalho tranquilo e muito respeitoso’’.

Outro ponto primordial da trajetória de qualquer pessoa trans é a mudança de gênero no documento de registro civil, e a retificação do nome, que, hoje em dia, é possível ser alterado sem a necessidade de ação judicial. O Provimento n. 73/2018 da Corregedoria Nacional de Justiça assegura o direito para pessoas trans em alterar nome e gênero em cartório. “Quando alterei, a universidade já estava super adequada para essas mudanças, mudei tanto o meu nome civil, quanto o gênero. Isso me ajudou muito na vida social e no meu relacionamento com as outras pessoas. Eu me senti mais empoderada a partir dessa mudança do registro civil. Quando a gente faz o encaixe do nosso corpo físico com a nossa identidade social, nossa identidade hormonal, com a nossa identidade psicológica, tudo fluirá”,  conta Michele sobre o processo após a mudança dos documentos.

 O papel da Attrac

Antes escrita com apenas um ‘’t’’, a sigla Attrac foi ressignificada, tornando-se a Associação das Travestis e Transexuais do Acre. As ações realizadas pela associação visam assegurar o direito à cidadania da comunidade trans na capital desde 2010, tendo grande inspiração para o grupo o ativista e babalorixá Germano Marino. Suas atividades são comemoradas com vitória, luta e muita (R)existência aos caminhos que a associação ainda planeja chegar. (R)existência, para o grupo, significa sempre lutar e nunca desistir, nunca ceder.

Pela falta de recursos para execução dos serviços jurídicos e psicossociais, a associação depende do poder público para efetivar sua atuação, na qual o Centro de Atendimento à Vida, o CAV, do Ministério Público, é o principal parceiro. Outros parceiros importantes são o Movimento de Mulheres Negras Acreanas e o Grupo de Mulheres Indígenas, que caracteriza uma grande comunidade de mulheres que se unem e por meio da, sororidade, expressão difundida entre o movimento, traz união e empatia, assegurando a empregabilidade e qualificação profissional a todas.

No dia 29 de janeiro deste ano, foi comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, que destacou a garantia da proteção social à população transexual e travesti,  uma vez que a comunidade LGBTQIA+ tem seus direitos negados historicamente. No Acre, os relatos encontrados pela Attarc são de estupros,  registros de violências e pessoas expulsas de casa. Rubby destaca ser de extrema importância a participação de entidades como a Attarc, que segue firme no enfrentamento à transfobia e na assistência do processo transexualizador, este que inclui ou não o acesso a procedimentos com hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, assim como acompanhamento multiprofissional, com o direito à atenção especializada e humanizada, garantindo liberdade e direitos básicos que, muitas vezes, são negados pelos parentes que não aceitam ter uma pessoa trans no seio de sua família.

‘Transempregos’: plataforma oferece banco de dados com currículos de pessoas trans para apresentar às empresas

Com a iniciativa de estimular a diversidade em empresas e confrontar a discriminação e o preconceito enfrentados por esta população, a plataforma TransEmpregos tem desempenhado um papel fundamental nesta construção. Criada em 2013 por quatro mulheres, Maite Schnieder, militante dos Direitos Humanos; Laerte Coutinho, cartunista; Dra. Márcia Rocha, Advogada Travesti e a psicanalista Dra. Letícia Lanz, são elas as protagonistas do projeto de empregabilidade que tem o maior banco de dados com currículos deste segmento no Brasil.

O sucesso se deu pela união e persistência em prol da transformação, visto que, no início, o trabalho consistia em juntar todos os currículos e apresentá-los às empresas, para depois os profissionais começarem a trabalhar nestas instituições que vem seguindo um novo paradigma e, assim, pluralizam o seu quadro de funcionários por meio das mudanças sociais, tornando-se um dos principais aliados na inserção dos profissionais da comunidade trans nos empreendimentos. No ano de 2022, a plataforma ajudou a empregar 1.113 profissionais, destes, 21,2% na área de tecnologia e uma pequena parcela de 0,2% na área de biotecnologia.

(*LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais, Assexuais), expressão usada durante todo o desenvolvimento do texto e mais difundida entre a comunidade).

 

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