Distante 363 km da capital acreana, a cidade de Feijó, que tem 35.426 habitantes, é conhecida como a Terra do Açaí – produto que também dá nome ao festival mais popular da quinta maior cidade do estado acreano, reunindo centenas de pessoas como forma de cultuar o fruto da palmeira Euterpe precatoria, nativa da Amazônia e protagonista na cultura e história do município.
Para quem o cultiva, o açaí é chamado de “ouro vinho”, por ser considerado a “pedra preciosa da floresta” para as famílias que obtêm renda a partir dessa cadeia produtiva sustentável. São esses produtores que estão comemorando uma recente conquista: o açaí de Feijó agora é considerado, de fato e de direito, um dos melhores do país.
O registro de Indicação Geográfica (IG), concedido em setembro de 2023 pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) ao açaí de Feijó, reconhece as características do produto pelo seu local de origem, o que lhe atribui reputação e identidade própria. Produtos com esse reconhecimento apresentam uma qualidade única, em função de recursos naturais como solo, vegetação, clima e a forma como são feitos.
O vinho produzido na cidade do interior do estado é conhecido por sua espessura e sabor. Para quem percorre a BR-364, é fácil descobrir quando se aproxima da cidade, já que as placas “Açaí de Feijó”, sinalizando a venda do produto, são inúmeras durante o trajeto. A ocorrência do açaí é tão forte no Acre, que o artista juruaense Alberan Moraes chegou a cantar que “o açaí é a uva das bandas de lá”.
A certificação nacional foi resultado de um trabalho desenvolvido pelo Sebrae Acre, governo estadual, produtores, agricultores e associações da cidade. O processo começou em 2021, com o levantamento de todos os dados e a organização da estrutura econômica entre os produtores.
“Fizemos toda a parte diagnóstica do território, buscando atender aquilo que o instituto solicita e, junto do dossiê, a capacitação dos produtores, para se adequarem e estarem aptos a emitir os documentos no Inpi”, explica o assessor técnico do Sebrae Acre, Fabry Saavedra.
Agora, o açaí de Feijó é a 107ª IG brasileira reconhecida pelo órgão e o segundo produto acreano com essa certificação, uma vez que a farinha de Cruzeiro do Sul também está na lista desde 2017.
A concessão da IG, no entanto, não significa o fim do processo. Pelo contrário, é o começo. A partir de agora, produtores e diversos atores desse mercado precisam se enquadrar nos requisitos técnicos para manter a qualidade do produto e emplacá-lo não só no mercado nacional, mas também internacional.
“Começamos agora uma terceira fase, que é a de capacitações, participação do produto e produtores em feiras, rodadas de negócios e concursos, ou seja, a parte de promoção do produto”, explica Saavedra.
Complementação histórica
Um dos documentos exigidos nesse processo foi o dossiê de notoriedade da região produtora do açaí de Feijó, elaborado pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas do Patrimônio Imaterial da Fundação de Cultura Elias Mansour (FEM), assinado pela historiadora Irineida Nobre.
Essa complementação histórica demonstra como o fruto faz parte da identidade do município, sendo a cor roxa predominante em marcas de prédios públicos, serviços de mobilidade e outros. Não é à toa que Feijó também é chamada de Capital do Açaí.
“É um registro da relação da comunidade com aquele fazer, com aquele produto. A gente teve que visitar as comunidades para entender o motivo de o açaí de Feijó ser tão famoso. Íamos buscando informações em entrevistas, conversas, e fomos tendo as repostas para essas perguntas”, relata a historiadora.
A pesquisadora destaca que a forma de fazer o açaí na cidade é uma tradição dos povos originários, assim como tantas outras atividades extrativistas na região. “Não posso fechar os olhos para onde tudo começa. Nossas tradições vêm dos povos originários. Hoje a questão do açaí é tão forte na cidade, que a faixa do táxi, por exemplo, é da cor roxa e também a tinta roxa na cidade é mais cara”, conta.
Mapeamento e organização
A agrônoma Eneide Taumaturgo, chefe da Divisão de Extrativismo e Sociobiodiversidade (Dives) da Secretaria de Estado de Agricultura do Acre (Seagri), explica que o selo nacional é importante para o reconhecimento da qualidade do produto e diz que, desde então, o Estado tem traçado planos para organizar essa cadeia produtiva.
O primeiro passo para mais avanços é mapear os açaizais do estado em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) por meio de drones.
“Começamos um projeto de mapeamento juntamente com a Embrapa, no sentido de identificar essas áreas nativas dos açaizais de baixio e terra firme. Nós temos o Fórum de Bioeconomia e temos discutido essa questão do subsídio à essa cadeia para que ela venha deslanchar. Estamos focados na questão do açaí e nesse mapeamento para a gente conhecer de fato os açaizais do estado do Acre – qual potencial, como organizar, porque mercado nós temos. Essas pequenas e médias indústrias que temos já têm mercado garantido e temos buscado na Secretaria organizar essa compra diretamente dos extrativistas para agregar um valor maior, para o valor ficar mais na ponta, não tirando o do atravessador que também necessita, mas que de fato essa remuneração seja melhor para quem mora na floresta, preserva e vive do extrativismo”, enfatiza.
Eneide destaca que a venda do fruto é uma das principais cadeias produtivas do estado. Enquanto, o recurso para o mapeamento não sai, o contato tem sido feito diretamente com as organizações desses produtores.
“O Estado tem focado em projetos para organizar de fato a cadeia, porque ela é consolidada, tem o início e o comprador final, e ela tem indústria para processar, mas precisa ser sustentável. A gente precisa que esses valores que são praticados na ponta cheguem diretamente ao extrativista, que é quem mora na floresta, a preserva, e vive dos bioprodutos.”
Todo esse trabalho de fortalecimento dessa cadeia ganhou um reforço importante com o selo nacional, que garante a qualidade e procedência do recurso.
“Importantíssimo esse trabalho do governo do Estado juntamente com a Embrapa e Sebrae, porque estamos trazendo um selo, um diferencial de toda uma cultura, de uma história do extrativismo do açaí, de um açaí feito de uma forma peculiar de uma região, tanto que é conhecido como açaí de Feijó. É importante que o mundo conheça e que tenha essa valorização, porque, a partir do momento que a gente tem esse selo de IG, você está valorizando o produto, você está mostrando de fato que o produto vem lá do ribeirinho, vem das áreas das florestas do interior do estado e que carrega a história de um povo que defende a floresta, que mora, e que vive da extração do açaí, e isso vai agregar valor ao produto e esse retorno vai chegar nas comunidades”, esclarece.
Festival do Açaí
Irineida diz que o próximo passo é tornar o Festival do Açaí, realizado na cidade desde 1999, um bem cultural e imaterial do estado. Das edições, apenas uma se deu de forma virtual, devido à pandemia. Ao longo dos anos, a participação popular tem aumentado e o evento se tornou um dos mais tradicionais da região.
A última edição se estendeu entre os dias 18 e 20 de agosto, e reuniu, segundo a organização, 53 mil pessoas. Nos três dias de evento, empreendedores expuseram seus produtos e movimentaram a economia da cidade.
“O festival tem uma solidez que permite que a gente pleiteie o Festival do Açaí como o primeiro festival acreano a ser registrado como bem cultural e imaterial do estado. Ele ocorre há 23 anos de maneira ininterrupta e todas as edições têm registros, então existe um material histórico importante pra que a gente faça esse trabalho”, diz Irineida.
Uma curiosidade é que, até o fim da década de 90, a cidade estava longe de alcançar o título de Capital do Açaí. Naquele período, a coleta dos frutos era realizada de modo concentrado no Vale do Juruá, composto pelos municípios de Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Porto Walter e Rodrigues Alves. Apenas em 2002 Feijó ganhou destaque na produção dos frutos da palmeira.
Organização dos produtores
Para obter a IG, foi preciso também organizar os produtores e quem faz o vinho para ser vendido no mercado. Assim, há cerca de dois anos, nasceu a AçaíCoop Feijó, que reúne atualmente cerca de 60 cooperados, entre produtores, coletores e batedores.
É a partir dessa organização e certificação que a produção local será mais bem trabalhada. Apesar de não se ter um número preciso de produção de açaí no município, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o açaí amazônico tem 92,4% de sua extração concentrada nos estados da Região Norte.
Em 2022, a produção foi de 247 mil toneladas, 8,8% acima da obtida no ano anterior. Em termos de valor, apresentou aumento de 7,7%, totalizando mais de R$ 830 milhões.
José Jevanis Nascimento é quem preside o grupo, mas explica que a cooperativa ainda está se ajustando, inclusive, ainda sem estrutura física. Segundo ele, o foco agora é organizar o sistema para tentar atingir novos mercados e investidores e ter um real controle da produção.
“Estamos ainda na fase de conversas, mas já recebemos convites de exportação, de mandar açaí em pote para os chineses, por exemplo; agora precisamos de incentivos da iniciativa privada e dos órgãos públicos. Estamos esperando uma das maiores safras dos últimos dez anos em 2024 e precisamos nos organizar para isso”, explica.
A palmeira que dá o açaí é nativa da região e atualmente a colheita é feita de maneira manual. Escalando-se o tronco do vegetal, de posse de uma faca afiada, os mais habilidosos são capazes de colher de três a cinco cachos de uma única vez.
Depois, os cachos são colocados em uma lona, para evitar o contato direto com o solo. O presidente da cooperativa explica que o município tem duas safras diferentes, mas que o ápice é entre fevereiro e março.
“Uma das safras ocorre às margens dos rios Envira e Jurupari e a outra na safra da terra alta, à margem da BR, que essa segunda vai de junho até o início de outubro; e acaba que uma safra completa a outra. Por isso, Feijó é considerado especial, por ter essas duas safras”, explica José Jevanis.
O coordenador do Projeto TED Bioeconomia no Acre, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o engenheiro florestal Daniel Papa, explica que os açaizeiros da região de Feijó são, em sua grande maioria, nativos, porém, isso também tem mudado ao longo dos anos.
“Na última década, com o aumento do valor do fruto no mercado nacional e internacional, os extrativistas começaram a transplantar as mudinhas da mata para perto das suas casas, em seus quintais. Esse processo nós chamamos de domesticação. E esse é o futuro do açaí, ele vai continuar sendo colhido na floresta, mas cada vez mais as pessoas irão plantar para poder ter uma produção maior e mais perto de casa”, avalia.
Atualmente, a Embrapa está justamente ajudando os extrativistas no processo de domesticação, pesquisando como plantar, identificando qual o espaçamento entre plantas, como preparar a muda, qual adubação fazer e como controlar pragas e doenças.
“Em 2024 teremos novos resultados na parte de sistema de cultivo, com espaçamentos e melhores solos. Temos que estimular o plantio do açaí-solteiro, que é nativo e está mais adaptado aos solos e clima do Acre. Mesmo que ele demore oito anos, precisamos estimular o plantio da espécie. Uma alternativa é plantar o solteiro com banana e em consórcio com outras espécies de ciclo mais curto. Dessa forma, o produtor tira renda da área com outras coisas, até o açaí começar a produzir. São os sistemas agroflorestais”, destaca Papa.
Coroação
O presidente da cooperativa diz ainda que a emissão da IG é “a coroação de um longo trabalho” que tem sido feito pelos produtores e atores desse setor no estado. Nos últimos anos, cursos de capacitação têm sido levados até as comunidades que vivem da produção do açaí.
“O principal objetivo é a valorização. Temos que investir na estruturação e na formação, temos cadernos de especificações técnicas, estamos padronizando os produtores, coletores e processadores, para que sigam esse padrão para embasar a IG. Temos o melhor açaí da região, temos um produto de excelentíssima qualidade, então temos que seguir esse padrão também na estruturação do nosso pessoal”, explica Jevanis.
Outro ponto importante, segundo o presidente, é que essa certificação contribui também para a questão ambiental na cidade. Feijó é uma das cidades que lideram o ranking de desmatamento e queimadas, e o extrativismo pode ser um aliado para mudar esse cenário.
“Um dos nossos maiores medos é de o boi comer o açaí, é uma metáfora para o desmatamento por conta da pecuária, porque destrói parte da floresta, que tem uma grande quantidade desse produto, que é o nosso trunfo. Isso é motivo para a gente brigar pela preservação da nossa floresta”, acrescenta Jevanis.
Julia Gomes trabalha com açaí há dez anos. Ela possui reserva nativa e agroindústria. O carro-chefe é a produção do vinho do açaí, mas ela também trabalha com outros derivados, como licor e cocada. Para ela, a IG traz mais notoriedade para o açaí cultivado em Feijó, o que deve abrir as portas para novos negócios.
“Acredito que possamos alcançar outros públicos e assim aumentar a procura e agregar mais valor ao produto. Mas primeiro precisamos de uma sede estruturada, para depois fazer com que esse produto seja comercializado por quem realmente tenha autorização legal para isso”, afirma.
Adevilson da Silva é produtor há 15 anos e mora no baixo Rio Envira, em uma terra de aproximadamente 300 hectares. Ele explica que atualmente vende a lata do açaí por preços que variam de R$ 30 a R$ 40, dependendo da época. Sobre a venda, ele concorda que o principal é apostar em compradores e também na forma de escoar essa produção: “O primeiro de tudo é ter um barco grande para transportar o açaí, porque, se você não tiver, tem que pegar de outra pessoa e pagar por isso, então já perde. Depois é ter produto pra vender. Se o cara tiver uma safra boa, consegue um lucro bom”.
Das margens do rio até as agroindústrias na cidade, a cadeia produtiva do açaí movimenta a economia, principalmente nas comunidades rurais. São famílias que se beneficiam de produtos florestais, com uma exploração sustentável que, aliada à economia, ajuda na preservação da área.
Já para Narcélio Paiva, que também trabalha com o vinho do açaí, além de escoar a produção, é preciso pensar em linhas de crédito para quem trabalha nos segmentos. “Estamos cheios de esperança com a IG e confiantes de que haverá um escoamento bom do açaí. Hoje podemos citar que nosso açaí é referência em qualidade e procedência. O escoamento ainda é um desafio grande, mas o incentivo é um fator importante”, analisa.
Estruturar o arranjo produtivo
Judson Valentin, do Centro de Pesquisa Agroflorestal do Acre, explica que a IG foi uma grande conquista, assim como a IG da farinha, mas ressalta que é necessário pensar na organização desse mercado, para que os resultados possam ser sentidos pelos produtores e impactem o município de forma significativa economicamente.
“O grande desafio é você estruturar todo o arranjo produtivo, para colocar esse produto no mercado com qualidade e segurança para o consumidor. É preciso capacitar os produtores para que tenham a gestão do processo gerencial da associação e consigam colocar o produto no mercado e gerar lucro e benefício para os produtores associados. Isso é um exemplo de que as cadeias da sociobiodiversidade, da bioeconomia, podem ser um vetor importante. São milhares de extrativistas no Acre que têm no açaí parte da sua fonte de renda”, relata.
Certificações como essa, segundo ele, são essenciais para agregação de valor a um produto que proporciona renda aos extrativistas. Mas é preciso ficar atento aos desafios, principalmente para que não ocorra a transferência do produto dos extrativistas para os grandes empresários.
“O ideal é que a gente tenha iniciativas, tanto de inovação tecnológica como de políticas públicas, que consigam apoiar essas populações, para que possam agregar valor ao produto por meio da biodiversidade, da bioeconomia, uma bioeconomia inclusiva, que inclua as pessoas no mercado, que elas tenham oportunidade de melhorar a renda e de mudar sua qualidade de vida, fazendo o uso sustentável dos recursos naturais”, salienta Judson.
O Sebrae e o governo do Acre encabeçaram o processo da IG do açaí de Feijó, e agora Valentin explica que as próximas fases de sucesso e resultados dependem da união de esforços.
“Várias instituições trabalham avaliando a produtividade, porque é preciso definir normas de manejo. Se você coletar demais você pode prejudicar a regeneração do açaí, então tem que definir todas as questões técnicas. A implementação e a consolidação do IG junto a esses produtores de forma organizada vão depender de vários parceiros públicos e privados atuando em conjunto, pra que isso alcance o sucesso, como está sendo em uma fase mais avançada da IG da farinha de Cruzeiro do Sul”, exemplifica.
Márcio Bayma, analista da Embrapa e mestre em economia aplicada, esclarece que é necessário se apropriar desse selo de qualidade para alcançar mercados específicos. “Entendo que nesta fase é imprescindível o engajamento dos produtores ligados à IG para o fortalecimento do associativismo e cooperativismo, por ser a única forma de se obter um grau maior de desenvolvimento comunitário e econômico. Eles precisam de crédito para a construção de uma agroindústria e assim poder comercializar em mercados e agregar valor à produção, como protagonistas desse arranjo”, acrescenta.
Para que esse tipo de modelo seja bem-sucedido, Bayma destaca que precisa haver um fluxo contínuo de usos e de forma que se retroalimente: “A floresta oferece os seus produtos e os extrativistas se beneficiam dos mesmos e, ao mesmo tempo, cuidam da floresta”.
O diretor técnico do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável do Amazonas (Idesam), André Vianna, completa, ainda dizendo que, em meio à Amazônia, é preciso apostar em produtos florestais como aliados não só da preservação, mas da economia das comunidades.
“Atualmente, há o desafio de agregar valor aos produtos da sociobiodiversidade nos territórios onde são produzidos. Estratégias com selos, certificações e indicações geográficas fazem parte dessa estratégia, pois valorizam a produção local e ao mesmo tempo se configuram como ferramentas que auxiliam na gestão das cadeias de valor”, observa.
Por Tácita Muniz