A data 29 de janeiro é conhecida, no Brasil, como o Dia Nacional da Visibilidade Trans, que surgiu a partir de um ato, organizado nesta data, em Brasília, no ano de 2004, como lançamento da campanha “Travesti e Respeito”.
O mês de janeiro como um todo também ficou marcado como Janeiro Lilás, no qual é celebrada e reafirmada a importância da luta pela garantia dos direitos das pessoas trans, pessoas, que enfrentam diversos desafios apenas para estarem vivas, e serem quem são, ainda mais em um país que liderava o ranking de nação que mais mata transexuais no mundo (e talvez ainda esteja, já que os dados referentes ao ano de 2023 ainda não foram disponibilizados).
Em meio a tantas notícias ruins e dados alarmantes, histórias como a de Khaio Velasquez, estudante de Direito, de 19 anos, aquecem o peito.
Khaio diz que, desde pequeno, se via de maneira diferente, e coisas que poderiam ser simples se mostravam como algo muito mais complexo, mas ele não sabia, ao certo, o motivo disso.
“Desde pequeno, percebia que algo era diferente, mas a explicação parecia escapar de mim. Tinha comportamentos estranhos, que não conseguia explicar, como quando minha mãe comprava roupas que eu considerava excessivamente femininas, e eu cortava com uma tesoura para evitar usá-las em público. Me sentia extremamente envergonhado quando alguém gritava meu nome para me chamar. Esses foram os primeiros sinais de uma jornada mais complexa”, explica ele.
Além da falta de referências sobre transgeneridade na mídia, o que não ajudou Khaio a se entender de maneira mais rápida, ele conta que o conflito inicial entre quem ele era, e sua fé, também foi algo que o incomodou, durante algum tempo.
“Conforme fui crescendo, percebi que sentia atração por mulheres. Esse processo, no entanto, trouxe consigo conflitos internos significativos, alimentados pela pressão social e religiosa. Temia que minha orientação sexual pudesse criar um abismo entre mim e minha fé e temi que minha identidade pudesse me afastar de Deus. Mas, ao estudar mais sobre minha fé, descobri que Deus é amor e aprendi que, como ser humano, sou uma expressão única da criação divina, e Deus ama todas as Suas criações”.
Ele diz que só foi se questionar quanto ao seu gênero e pesquisar sobre o assunto, quando viu um garoto trans em sua escola, por volta dos seus 14 anos. “Despertou minha curiosidade e entrei numa jornada de pesquisa sobre identidades trans. Percebi que, mesmo me considerando uma pessoa LGBT, sabia muito pouco sobre pessoas trans”.
Khaio diz que, ao vestir um binder (peça de roupa usada para comprimir os seios e dar uma aparência mais esguia), entendeu que boa parte do desconforto e estranheza consigo mesmo era, na realidade, o que se chama de disforia de gênero.
“Quando vesti um binder, pela primeira vez, percebi que preferia meu peitoral reto e masculino, e que parte do meu desconforto com minhas roupas era devido aos meus seios. Assim, pesquisei como outros homens trans perceberam que eram trans, e algo que me marcou profundamente foi quando um deles disse que uma pessoa cis dificilmente teria dúvidas se é trans. Nunca me senti cis; sempre pareceu que eu era fora da caixa, e as pessoas frequentemente falavam que eu parecia um menino, o que não me incomodava, mas era doloroso a forma como falavam de maneira pejorativa”, revela Khaio.
O jovem estudante de Direito diz que sempre soube que mudaria de nome e que a escolha por “Khaio” é uma forma de lembrar que é possível sim reinventar e subverter as “tradições”, mesmo partindo de algo comum, o que, segundo ele, lembra sua trajetória de auto descoberta e aceitação.
O que surpreende e torna a trajetória de Khaio tão bonita foi a maneira como sua família o abraçou e acolheu em meio a tantas mudanças. “Minha mãe sempre me permitiu escolher os brinquedos que preferia, mesmo que fossem considerados masculinos, e gradualmente ela também passou a apoiar minhas escolhas de roupas, começando com camisas e evoluindo para calças masculinas e assim por diante. A primeira pessoa da família para quem contei sobre minha identidade trans foi minha irmã mais velha, que não apenas me apoiou, mas continua a oferecer seu apoio até hoje”, conta o jovem.
Ele tentou adquirir o nome social com a ajuda da irmã, entretanto o processo não deu certo e pra isso precisou recorrer a sua mãe. Apesar da situação, que foi um motivador pontual, ele explica que o processo de “se assumir” para a família foi algo muito gradual e que tudo fluiu de maneira natural.
“Nunca me senti desrespeitado ou invalidado de alguma forma por minha família. Embora, às vezes, cometam erros nos pronomes devido à fase de adaptação, todos me oferecem um apoio incondicional. Sinto-me muito privilegiado pela família que tenho, pois sei que essa não é a realidade de muitas pessoas trans.”, explicou o universitário.
Em relação à assistência dada pelo Estado, os processos legais em si correram bem, entretanto, na prática, continuou enfrentando muitos problemas, por falta de conhecimento das pessoas, que acabam desrespeitando seus direitos, e, por vezes, o constrangendo.
“Muitas vezes, eu precisava ficar lembrando os professores para não errarem na hora da chamada, o que era cansativo e constrangedor (…) Também enfrentei alguns problemas no uso dos banheiros, devido à falta de preparo de um funcionário e à estrutura deficiente dos banheiros (as portas não trancavam e homens trans não podem usar a porta aberta). Por causa disso, eu sempre precisava ir ao banheiro com um amigo, tornando a situação bastante problemática”, explicou Khaio.
Por fim, o jovem relata que a inauguração do ambulatório voltado para o público trans, na URAP Ary Rodrigues, tem dado um atendimento exemplar. Khaio começou a realizar a sua hormonioterapia no local, com toda assistência do poder público.
“Essa experiência mais recente me trouxe esperança e satisfação em ver avanços nas políticas públicas relacionadas às pessoas LGBTQIA+. No geral, embora eu reconheça os progressos, acredito que ainda há espaço para ajustes e melhorias nas políticas públicas voltadas para a comunidade LGBTQIA+, visando garantir uma experiência mais inclusiva e respeitosa em diversos setores da sociedade”, finaliza Khaio.