Depois de um ano marcado pelo início do ciclo de corte de juros pelo Banco Central do Brasil (BC) e por medidas de incentivo do governo para reduzir o preço do carro zero em 2023, o setor automotivo projeta um mais um ano de crescimento em 2024. Mas será que vai ficar mais fácil comprar um carro zero neste ano?
Esta reportagem responderá a essa pergunta a partir dos seguintes pontos:
Projeção de mais vendas
A última projeção da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) é de um crescimento de 12% em 2024. O g1 não contabiliza motos e implementos rodoviários. Esse aumento, caso concretizado, significaria aproximadamente 2,6 milhões de unidades emplacadas apenas no mercado interno.
Para automóveis e comerciais leves, a previsão é de um aumento de 12% nesse ano, totalizando 2,44 milhões de emplacamentos.
Já a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) estima um aumento de 6,1% nos emplacamentos em 2024 contra 2023, para 2,450 milhões de unidades.
A produção deve crescer 6,2% neste ano, para 2,470 milhões, com as exportações na casa das 407 mil unidades, alta de 0,7% na mesma base de comparação.
Como os financiamentos representam 41% dos novos veículos emplacados no país, as entidades do setor acreditam que um bom impulso no mercado está ligado a uma melhora no cenário de crédito.
Mas especialistas ouvidos pelo g1 ponderam que o acesso a empréstimos mais baratos ainda chega a passos lentos ao consumidor, mesmo com a recente sequência de quedas da taxa básica de juros do país, a Selic.
O crédito automóvel vai continuar caro?
Apesar de o BC já ter dado início ao ciclo de corte da Selic, especialistas apontam que o movimento de redução das taxas de financiamento de automóveis ainda leva tampo para se refletir nas condições oferecidas aos consumidores.
O repasse da queda da Selic aos juros na ponta tem um período de defasagem, que leva de três a seis meses para ser sentido pela população. A mudança pode ser um pouco mais rápida nas linhas de crédito com garantia, ou por fatores como o tempo de relacionamento com os bancos.
“É difícil dizer quando a queda de juros passa para a ponta consumidora porque há mais de um componente que explica tudo isso: temos a influência da taxa básica [Selic], o risco de crédito e o componente da inadimplência no mercado, por exemplo, além de impostos e outros fatores. Então além de [o repasse] não ser automático, ele também não é feito na íntegra”, explica a consultora Tereza Fernandez, da TF Consultores Associados, especializada na avaliação do setor automotivo.
Ainda assim, a redução gradual da Selic cria uma tendência positiva de queda para as demais taxas de juros e isso deve, uma hora ou outra, se refletir no segmento automotivo.
“Os juros já começaram a cair. Isso se reflete na cadeia mais lentamente, mas já é um alento”, disse o diretor-executivo da Fenabrave, Marcelo Franciulli.
Dados do BC, por exemplo, indicam que houve uma queda de 3,2 ponto percentual na taxa média de juros cobrados nos financiamentos de automóveis de pessoas físicas em dezembro de 2023 contra o mesmo período de 2022, para 25,5% ao ano.
Mesmo com a retração, o nível de juros continua bem maior do que o observado antes da pandemia. Em dezembro de 2019, a taxa média para os financiamentos era de 19,2% ao ano.
Nos grandes bancos, a média pode ser um pouco mais baixa, a depender do perfil do tomador e do relacionamento do cliente com a instituição. Veja exemplos abaixo.
Procurados, Bradesco e Santander não informaram as taxas de juros nem o prazo médio de pagamento para os financiamentos de veículos em sua carteira de crédito.
Para Fernandez, da TF Consultores Associados, mesmo que a perspectiva seja de que Selic continue caindo pelo menos no primeiro semestre deste ano, esse já é um bom momento para aqueles que pretendem tomar crédito para adquirir um veículo.
“É uma boa aproveitar o atual momento. O cenário está otimista, não temos nenhum impacto lá de fora e é uma boa hora para fazer um financiamento. Até junho, muita coisa pode ou não acontecer. Vai que os Estados Unidos ainda não tenham baixado os juros, por exemplo. Melhor aproveitar o agora”, afirmou.
O que explica esse nível de juros?
Parte desse cenário pode ser explicado pelo nível de calotes observado no setor, que, apesar de ter apresentado uma leve melhora, continua em patamares elevados. Segundo o BC, a inadimplência ficou em 5,2% no crédito para aquisição de veículos em dezembro do ano passado.
O número representa uma queda de 0,2 ponto percentual em relação ao mesmo mês de 2022, quando era de 5,4%, mas ainda é bem maior do que o observado em dezembro de 2019, quando marcou 3,4%.
“A inadimplência está mais alta do que era, mas está estabilizada. E há um viés positivo porque, além da Selic, que está caindo, outro fator importante é a lei que determina que a retomada do bem quando o consumidor está inadimplente passa a ser extrajudicial. É um processo mais rápido e célere, que melhora a garantia e ajuda o mercado de crédito”, avaliou Franciulli, da Fenabrave.
O executivo se refere ao novo Marco Legal das Garantias, sancionado em outubro de 2023. A lei muda as regras para o uso de bens, como imóveis ou veículos, como garantia para empréstimos e facilita a retomada de carros por bancos no caso de inadimplência, entre outros pontos.
A medida fez parte da agenda do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, do ano passado, e veio como uma tentativa de reduzir as taxas de financiamento por meio da queda do spread (diferença entre o juro cobrado na captação dos recursos pelo banco e as taxas cobradas para o consumidor).
No caso de uso de veículos como garantia, o texto permite a retomada sem recorrer à Justiça, em caso de inadimplência. O procedimento extrajudicial pode ser tanto em cartórios quanto nos departamentos de trânsito locais.
“O mercado de novos atrai um público com crédito um pouco melhor, então a inadimplência [nesse segmento] é um pouco mais baixa do que a média mostrada pelo BC. Mas, para ambos os casos, a tendência é de um 2024 mais positivo”, diz Paulo Noman, presidente da Associação das Empresas Financeiras e Montadoras (Anef).
Segundo Noman, a estimativa é que o mercado geral de veículos é formado por algo em torno de 2,5 milhões de carros novos e de 14 milhões a 15 milhões de carros usados.
Marco legal das garantias: novas regras permitem que um único imóvel seja usado como garantia para mais de um empréstimo
O que esperar para 2024?
Para os especialistas ouvidos pelo g1, o cenário positivo é uma junção de juros mais baixos, inflação mais controlada, um maior apetite por parte dos bancos e um olhar mais voltado para o setor automotivo por parte do governo (entenda mais abaixo).
Mas o número ainda é baixo perto dos picos atingidos pelo setor, entre 2012 e 2014. Na época, o país chegou a emplacar entre 3,5 milhões e 3,8 milhões de veículos anuais, enquanto hoje as projeções estão na casa dos 2,5 milhões de veículos neste ano.
Na época, além das medidas de redução de impostos sobre produtos industrializados (IPI) e do pacote de estímulos trazidos pelo governo, o país também viveu um bom período de exportações na categoria.
O momento durou pouco, pois a indústria brasileira enfrentou novas crises econômicas — como a de 2015 e de 2016 — e períodos complexos no comércio exterior. Houve queda no volume de produção, de exportações e de licenciamentos.
Desde então, o setor não recuperou os bons números vistos 10 anos atrás. Veja os gráficos abaixo:
Para especialistas, algumas incertezas ainda podem pesar para o segmento automotivo.
“É preciso entender o quanto o componente doméstico e o importado, de juros norte-americanos e no exterior, refletem por aqui”, disse Noman, da Anef.
Além da política monetária ainda restritiva do BC, há influência da crise nas contas públicas brasileiras e de fatores internacionais como as dúvidas a respeito das eleições norte-americanas e de um eventual agravamento da guerra no Oriente Médio.
“Ainda existem algumas interrogações. Quais os efeitos de uma eventual eleição de Donald Trump no Brasil e no mundo, por exemplo? Será que pode afetar o câmbio?”, afirmou a consultora Tereza Fernandez, da TF Consultores Associados, especializada na avaliação do setor automotivo.
“Outro risco é uma eventual piora na guerra no Oriente Médio, que poderia afetar caminho marítimos e fretes, além de trazer possíveis impactos na inflação. É algo para se esperar e ver. Mas, mantidas as condições de temperatura e pressão, o cenário brasileiro é positivo”, completou Fernandez.
O governo deve trazer alguma medida para o setor neste ano?
Se no ano passado um dos fatores que ajudaram o segmento foi o corte de impostos anunciado pelo governo para tentar reduzir o preço de carros de até R$ 120 mil — programa que durou apenas um mês no caso dos automóveis populares, com mais de 125 mil veículos vendidos no período —, neste ano (e nos próximos) o destaque fica com o programa “Mover”.
Uma medida provisória (MP) publicada no final de dezembro do ano passado traz, entre outras coisas, as diretrizes do plano de incentivos para veículos sustentáveis e para a realização de pesquisas voltadas às indústrias de mobilidade.
O programa deve ser custeado pelos recursos arrecadados pelo governo por meio do aumento do imposto de importação incidente sobre veículos elétricos e placas solares. A elevação do tributo será gradual até 2026, e foi pensada como uma forma de incentivar o investimento na produção nacional de veículos elétricos.
Com o aumento do imposto para os veículos importados, a ideia é tornar a mercadoria nacional mais atraente, uma vez que o custo deverá ser menor ao consumidor final.
Para Franciulli, da Fenabrave, o “Mover” é um plano mais abrangente e deve promover uma renovação da frota no Brasil, começando inicialmente por caminhões e ônibus para, depois, abranger toda a cadeia.
“No Brasil, o veículo tem certidão de nascimento, mas não tem de óbito. Temos uma frota enorme registrada no país sendo que, do total, 30% ou 35% não circula”, disse, acrescentando que o setor também precisa trabalhar com o governo para reativar a venda de veículos mais acessíveis. “É esse pessoal que acaba tendo os veículos mais antigos e não tem condição de renovar”, acrescentou.
Franciulli ponderou, no entanto, que “não são medidas isoladas e específicas” que vão trazer novas perspectivas de crescimento para o setor.
“É um conjunto de medidas. Nós precisamos ter um cenário econômico estável e o governo precisa fazer o papel dele no sentido de controlar gasto e promover um equilíbrio fiscal, o que se reflete em uma inflação menor. A ideia é que o consumidor não perca poder aquisitivo”, completou o diretor da Fenabrave.
Fonte: G1