Tem gente que lembra com a maior facilidade que todo mundo já foi criança. Que todo mundo já foi fofo, esperto e cheio de amor no coração. E talvez seja isso mesmo. Mas às vezes, é difícil acreditar. E vivendo em São Paulo, no centro de São Paulo, como eu vivo, a confusão armada de de manhã cedinho até de noite, você no desejo louco de ficar na sua, viver tranquilo, sabe? Pensando alto aqui só. Por agora, o que eu quero mesmo é te contar de um ou dois ex-fofos com quem cruzo quase todo dia no prédio.
Eu tenho um vizinho que mora com o irmão. Ambos, homens de meia idade, cada um com seu cachorro no hall do elevador, Wagner Felipe e Otavio Augusto. Alheios a qualquer aviso do condomínio, nunca apanharam nenhum resto dos bichinhos com quem não andam na rua. “A rua é suja demais”. Já ouvi dos dois cujo cheiro, quando no térreo, sinto do oitavo andar e olha que tenho olfato lerdo. É da porta de casa pra porta do elevador, da porta do elevador para o hall. Ontem, dona Cândida do 62 escorregou no xixi do poodle. Foi uma comoção. Pelo que me disse Pedro, porteiro aqui do prédio, parece que foi fratura de fêmur. Pedro trancou o dente de raiva enquanto me contava. “Fratura de fêmur, Roberta. E ele ainda riu quando falei da multa”. “Mas agora era só o que me faltava, a mulher não olha pro chão, o servente não faz o serviço e eu que pago multa”. É. É difícil acreditar que Wagner Felipe do 91 foi uma criança fofa, esperta e com cheiro de lavanda Jonhson´s.
Aí tem a filha de dona Cândida que mora no 62 com a mãe e dois filhos pequenos. Sexta-feira, na reunião de condomínio beliscou o menino mais novo e fechou a cara quando a mãe jurou que os débitos do 62 não conferiam. “Eu deposito na conta de Magda no dia 30 pra dar tempo de pagar o boleto no dia 5. Tá tudo certo, deve haver algum engano”. São 13 meses de atraso já. É. É difícil acreditar que Magda do 62 foi uma criança fofa, esperta, que pegava emprestado, mas devolvia o balde e a pá do amigo na hora de sair do parquinho.
Adriana do 51 foi visitar dona Cândida ontem depois da missa. Adriana vai a missa todo domingo. Nos encontramos na padaria. Ela revoltadíssima com Wagner Felipe e Otavio Augusto. “Nem é gente, esse povo nem é gente”. Voltamos caminhando juntas. Segurei a porta do elevador, mas Adriana não veio. Pedro ajoelhado pegando uma mudinha do pacova que tá dando feito mato no jardim do prédio, ouviu foi muito grito. “Tira essa mão daí já!”. Tomei até um susto. Pedro e eu. Arrancou a mudinha da mão do moço e prometeu levar o “absurdo” pra próxima reunião de condomínio. Aposto que terá o apoio de Magda e dos do 91. É. É difícil acreditar que Adriana do 51 foi uma criança fofa, esperta que gostava de dividir o lanche no recreio.