A frase: “a extinção da punibilidade para o cumpridor, quanto à sanção pecuniária, é medida que se impõe”, na sentença da Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas (Vepma) de Rio Branco, dá um final ao processo n.°0000133-26.2019.8.01.0017. Mas, para Gilson Kennedy do Rosário Pereira, de 56 anos, este fim representa um mundo novo ou, como ele mesmo disse várias vezes, “esta é minha carta de alforria”. Afinal, com o papel, no qual ele diz que está quite com a Justiça, Gilson vai conseguir tirar o CPF, o título de eleitor, para abrir uma conta no banco e começar a trabalhar em um emprego fixo e tentar sair da rua, onde vive há mais de cinco anos.
Em 2017, em Rodrigues Alves, Gilson foi condenado por estar com uma trouxinha de maconha e duas munições. Apesar de ele assumir a responsabilidade apenas pela maconha, foi sentenciado pela prática de posse de drogas para consumo próprio e posse de munição sem registro (art. 28, caput, da Lei nº 11.343/06 e art. 16 da Lei n. º 10.826/03). A pena privativa de liberdade foi substituída por prestação de serviço à comunidade e pagamento de 10 dias multa como pecúnia – nome dado a obrigação financeira imposta nas sentenças criminais aos réus.
Gilson prestou o serviço em Rodrigues Alves, mas veio tentar a vida em Rio Branco, porém, aqui, a situação não melhorou e ele foi parar na rua e não teve condições de pagar a imposição financeira, estava com essa pendência, e seu caso foi transferido para a Vepma. A equipe multidisciplinar da unidade fez o encaminhamento dele para as instituições de assistência social, a Central Integrada de Alternativas Penais (Ciap) e o Centro de Referência Especializado para População em situação de rua (Centro Pop).
Foi no Centro Pop que Gilson encontrou oportunidade de mudança. Um dia, apareceu alguém da Educação perguntando quem queria estudar, ele quis e com muito esforço, enfrentando várias dificuldades, especialmente, a fome, se formou no Ensino Fundamental. Na cerimônia, onde vestiu a beca de formatura que, segundo ele, parecia muito mais um vestido, celebrou e recebeu do prefeito, Tião Bocalom, uma proposta de emprego, um cargo comissionado na Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SASDH). Mas, como ainda estava cumprindo a sentença, não tinha documentos para abrir uma conta no banco e começar a trabalhar.
Então, o diálogo entre as instituições, fruto do trabalho estimulado pela política pública e judiciária para atender pessoas em cumprimento de pena, ocorreu e um relatório da Ciap foi encaminhado à unidade da Justiça acreana, para verificar a possibilidade de extinguir a pena. Assim, Gilson pode atualizar seus documentos, para continuar seu processo de ressocialização e reinserção social, tendo acesso à dignidade, que, para ele, significa poder comer todos os dias e terminar os estudos.
“Você sabe qual é a alegria do morador de rua? Não é a cachaça, não é a droga não. É o alimento quando chega. Essa é a maior alegria nossa. A droga, o álcool é um consolo, o alimento é a alegria é o êxtase, sabe? É muita fome, muita fome mesmo”, disse Gilson, que além dessa situação, é professor de capoeira, tendo orgulho de ter desenvolvido durante 21 anos trabalhos com o esporte em Rodrigues Alves.
Sentença: multa para quem?
O pedido foi analisado pela juíza titular da Vepma, Andréa Brito, que reconheceu a complexidade da situação. O caso de Gilson é um exemplo das adversidades que passam pessoas em cumprimento de penas no Brasil. Por isso, existe uma gama de políticas judiciárias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como: as Resoluções 288/2019 e 425/2021, que instituem a promoção de alternativas penais e atenção a pessoas em situação de rua e suas interseccionalidades; o Programa Fazendo Justiça, voltado a enfrentar as violações massivas dos direitos dentro dos sistemas penais e socioeducativo no país; e ainda a Justiça Restaurativa, que busca promover da justiça com foco na reparação dos danos e ressocialização.
Essas iniciativas envolvem instituições, poderes e órgãos públicos das esferas federais, estaduais e municipais e o Tribunal de Justiça do Acre (TJAC), por meio do Grupo de Monitoramento e Fiscalização Carcerária e Socioeducativa (GMF), que atua ativamente para enfrentar esses cenários, que implicam, como na história do Gilson, refletir sobre a efetividade da aplicação de multas para pessoas vulneráveis, em situação de rua, sobrevivendo em hipervulnerabilidade, como ressaltou a magistrada nesta sentença:
“(…) percebe-se que o inadimplemento da sanção pecuniária agrava ainda mais a desigualdade e a exclusão social, prejudicando a capacidade do indivíduo de se reinserir de maneira digna na comunidade. A falta de recursos financeiros aliada às dificuldades de inserção na sociedade aprofunda o ciclo de pobreza, tornando mais complexo o processo de ressocialização, aumentando as chances de reincidência criminal”.
Na sentença, disponível aqui, Andréa Brito, ressalta a importância de tratar esses desafios com a articulação dos setores públicos, “as lições apontam que o Poder Judiciário precisa cada vez mais conceber-se como um sistema. É preciso compreender a interdependência na atuação dos diversos órgãos e os riscos da falta de sinergia nessa relação (…). Ao pensar de forma ampla a administração da justiça e confrontar de fato seus desafios, não basta que cada um faça a sua parte. É preciso que haja articulação, que cada ator se insira num processo encadeado de construção e implementação das soluções possíveis”.
Nesse sentido, a assistente social Pâmera Silva, da Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas, explicou que é uma rede de atendimento e cada pessoa envolve um tipo de solução. “Esse é um trabalho que vem sendo desenvolvido nos últimos anos e não funciona apenas como mero encaminhamento. Na verdade, as ações são diversas incluindo diversos estudos de casos e reuniões institucionais envolvendo atores da Rede Socioassistencial e RAPS (Rede de Atenção Psicossocial), como Ministério Público, Unidade de Monitoramento eletrônico, Ciap, Escritório Social, Centro Pop, CAPs (Centro de Atenção Psicossocial), Defensoria Pública, Associação de Redução de Danos do Estado do Acre, enfim, dependendo do caso os dispositivos da rede são acionados”.
Liberdade
Toda essa política é para propiciar que mais Gilsons tenham chances e que as leis e Constituição Federal sejam cumpridas. Pois, infelizmente, a metáfora usada por Gilson, de que a escravidão dele acabou com a extinção da punibilidade, retrata um problema no sistema penal brasileiro, reconhecido pelo CNJ, de que o racismo estrutural é perpetuado, quando pessoas negras, pobres, vulneráveis compõem maioria das pessoas encarceradas no Brasil. Segundo o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2023, negros são 68,2% das pessoas privadas de liberdade.
Por isso, esse trabalho é essencial, como disse a servidora do Judiciário do Acre: “o caso do senhor Gilson é apenas um dentre as centenas de pessoas que acompanhamos e recebemos aqui na Vepma. Ele me fez refletir o quanto a equipe multidisciplinar do Judiciário e das demais instituições necessitam dar cientificidade à sua prática sabe? Uma pessoa moradora de rua é extremamente massacrada pela sociedade em geral e taxada como alguém incapaz de exercer cidadania por preconceitos já inerentes a quem só olha essa população de longe. Nós enquanto servidores públicos temos o papel de fazer diferente e impulsionar as políticas públicas”.
A história do Gilson comprova que políticas públicas e judiciárias dão resultado. Ele já começou neste início de março o Ensino Médio, no Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja), depois vai buscar se formar em Educação Física. Mesmo indo passar a noite em um local disponibilizado para ele no Ramal do Canil, longe do Centro e precisando ir cedo para o lugar por conta dos riscos, estudando de tarde, está ansioso para começar a trabalhar e continuar estudando, porque para ele a oportunidade de vida digna vem da Educação.
“Me ajudou muito chegar aqui e ouvir que eu estou livre, que eu recebi minha carta de alforria. Agora, eu não fico mais com vergonha de mim. Eu posso viver a minha vida em paz, sair na rua. Agora eu tenho trabalho e também vou ajudar eles, os moradores de rua”, disse Gilson, que fez questão de deixar um agradecimento aos amigos do grupo de capoeira em Cruzeiro do Sul e de Rio Branco que o socorrem, as instituições públicas, Centro Pop, Prefeitura, a Justiça, a juíza e seus amigos que estão em situação de rua.
Fonte: Ascom TJAC