Estava acumulada há semanas. E vocês sabem que tenho aquele fraco por loteria, não sabem? É uma memória da infância. Meu pai gostava da Mega, íamos juntos ele e eu à lotérica. Naquele tempo o jogo era baratinho, de pagar com moeda. Só tinha um sorteio na semana e a gente voltava pra casa conversando sobre como seria a vida a partir da segunda quando o limite financeiro já não faria parte de nossas história. Não importava o tamanho do prêmio, a brincadeira era eliminar a regra do “isso não pode, é muito caro” sendo isso o que fosse.
– Vou colocar uma roda gigante no quintal lá de casa, posso? – eu começava.
– Claro que pode. Sabe quando entregam? – Ele seguia na naturalidade do mundo inteiro.
– Quarta-feira. Tu acha que vai caber?
– Depende, é na casa que a gente mora agora ou na casa nova?
– Na nova, claro. Como ela é mesmo?
Ele começava a descrever cada cômodo da casa nova, a mesa de jantar de 30 lugares, os banquetes e os cristais, o quarto de brinquedos, dava detalhes das prateleiras, mencionava as bonecas todas que eu paquerava nos comerciais da TV. Dizia do meu quarto, do banheiro que tinha uma banheira tão grande que dava pra instalar um escorregador (que a gente chamava de escorrego) e um barquinho pequeno. Da cama que ia precisar de 25 travesseiros, dos guarda-roupas, os meus e os das Barbies.
– Mas não tem calça jeans de Barbie de jeans de verdade, pai.
– Não tem aqui no Brasil. Mas a França é especialista em roupa de Barbie de tecido de verdade, sabia? Tem até meia-calça. Os tênis das Barbies de lá até cadarço tem, tu acredita? É pequenininho, mas se a pessoa se concentrar bem muito consegue fazer até laço.
– Tu me leva lá, pai?
– Claro. O único problema é que vai ser um pouquinho triste no dia das crianças (ou natal, ou aniversário, a depender do mês que a gente estivesse ele lançava a próxima data de ganhar presente), né?
– Por que?
– Porque não vai ter presente, tu já vai ter tudo. Não vai ter o que pedir. Deve ser tão triste não querer nada, né?
Ele contava da tristeza da falta de necessidade de ir atrás do desejo até eu desistir de ganhar. A gente chegava em casa na alegria do almoço de mesa de quatro lugares e, até o próximo fim de semana, eu amava cada detalhe da vida de verdade. Essa semana, a mega acumulou em 102 milhões. Hoje, quando abri o computador pra conferir o jogo de sábado, me deu um medinho de ganhar, um medinho da tristeza desse não querer nada. Achei graça e tive uma vontade enorme de abraçar meu pai. Mando daqui, um abraço pra ele e um pra você que me lê agora. Cultivemos o desejo, acho que era sobre isso. Boa semana, queridos.