Ícone do site Jornal A Gazeta do Acre

Campos, geoglifos, templos e ídolos dos povos originários do Acre

Por Alceu Ranzi e Evandro Ferreira

Abaixo, alguns trechos resgatados de anotações de três viajantes-exploradores que passaram pelo Acre, na transição do século XIX para o século XX.

Desses relatos, apenas pinçamos aquilo que, ao nosso entender, diz respeito aos recintos sagrados e ídolos dos povos originários ou dos antigos habitantes das terras do atual Estado do Acre.

O primeiro relato é o do Cel. Antonio Rodrigues Pereira Labre (Labre,1888), mais conhecido por ser o fundador da cidade de Lábrea, na margem direita do rio Purus no Estado do Amazonas.

Em agosto de 1877, Labre realizou uma travessia a pé, de mais de 200 km em linha reta, partindo da margem esquerda do Rio Madre de Dios, acima da cidade de Riberalta na Bolívia e em aproximadamente 20 dias atingiu a margem direita do rio Acre, nas proximidades da boca do atual Riozinho do Rola, à montante da atual cidade de Rio Branco, capital do Acre (Pessoa, 2017).

Vamos ao relato de Labre:

 “Mamuyeçada é uma maloca de 100 e tantos a 200 habitantes; tem forma de governo, templos, culto e religião; tem plantações, são cultivadores; tem mulheres claras e algumas tem traços de beleza. Não tomam elas parte no culto, sendo-lhes proibida a entrada no templo e obrigadas a ignorar os nomes e formas dos ídolos, que não tem forma humana, são figuras geométricas, feitos de madeira fina polida. O maioral ou pai dos deuses chama-se Epymará, tem forma elipsoide e poderá ter em dimensão o comprimento de 35 a 40 centímetros. Tem fetiches de pedras polidas de forma e tamanhos diferentes. Apesar de terem padres encarregados do culto, que guardam o celibato, todavia o chefe é o pontífice da igreja.

 Cuynêputshua é povoação abandonada; tem ainda boa casa, um pequeno templo e um pátio limpo e plano, em forma circular. Encontramos nessa povoação um chefe e suas duas mulheres e dois filhos que tinham vindo visitar o templo e suas plantações.

 Huatchaputhsúa, uma grande povoação Guaraya, abandonada há um ano; tem ainda uma grande casa bem conservada e um templo fechado por duas portas, onde ainda se conservam muitos ídolos, enfeites e instrumentos de guerra, etc.

 Ao meio dia chegamos a um prado artificial com uma circunferência de 5 km, tendo ao centro duas casas já abandonadas, porém limpas e ainda guardavam grandes caldeirões de barro queimado de mais de um metro de altura e diversos objetos e enfeites guardados em tecido de palha. Encontramos nesta tapera um selvagem que velava as plantações de coca, de cujo uso são muito habituados.

 Desta maloca deserta seguimos para Canamary, passando em caminho lugares de povoações antiquíssimas, muitas encruzilhadas e estradas, ora para a direita, ora para a esquerda; atravessamos pequenos campos, em um deles, o maior, encontramos uma choça com oito selvagens, que estavam se estabelecendo de pouco tempo, nos receberam com alegria e manifestações de paz. Afirmaram eles ser natural aquele prado, poderia ter 5 quilômetros de comprido e 3 quilômetros de largo”.

Em sua travessia, Labre escreve que passou pela aldeia de Cuynêputshua e relata a existência de um templo inserido num pátio limpo e plano, em forma circular. Essa citação pode sugerir o templo dentro de uma estrutura conhecida hoje como Geoglifos. E a sugestão de geoglifos também pode-se inferir quando Labre relata a existência de grandes campos artificias onde se encontravam os templos.

Os estudos e as evidências obtidas com as escavações nas estruturas geometricas, mais os relatos de Labre, levaram os arqueólogos à conclusão de que os Geoglifos teriam sido construídos principalmente com fins cerimoniais (Schaan, 2012).

Acompanhando a cronologia da viagem de Labre, após cruzar o Rio Abunã, no mesmo dia a comitiva chegou em uma região de campos. Isso indica que Labre já estava no Acre, possivelmente no Campo do Gavião, nas proximidades da atual cidade de Capixaba onde a ocorrência de Geoglifos é relativamente comum.

O segundo relato é o de José Manuel Aponte, de nacionalidade Boliviana e autor do interessante livro “La Revolución del Acre”. Aponte testemunhou e descreve a tomada de Puerto Alonso pelas tropas de Plácido de Castro, em 24 de janeiro de 1903 (Aponte, 1903).

Sobre o Acre, seus moradores primitivos e costumes, nos relata Aponte nas páginas 66 e 67:

“Não é difícil encontrar algumas tribos, próximo da boca do Rio Xapuri, no caminho para o Rio Iaco, vivendo em suas malocas, grandes habitações onde vivem homens, mulheres e crianças, eles ocupados com a caça e pesca e as mulheres em suas atividades peculiares, todos em completa nudez.

 No mês de março de 1901, tive a oportunidade de visitar essas malocas, situadas umas dezoito léguas ao Noroeste do Xapuri, no interior da floresta; contemplar esses aborígenes estendidos prazerosamente em suas redes e extasiar-me com os variados e preciosos desenhos das grossas tabocas, partidas de comprido, para sustentar o teto, com figuras simbólicas de onças, cobras, raposas, aves e peixes. A cobertura embora tenha uma só camada de palha, é tão primorosamente tecida e entrelaçada que é de muita duração e impenetrável pelas chuvas. Não se compreende como esses selvagens sejam também artistas. Em um lugar oculto existe um templo onde está seu Deus de madeira, pequeno, grosso, com os olhos e nariz e as demais linhas do rosto perfeitamente desenhadas e a genitália enormemente grande como emblema da reprodução e todo o busto coberto de flechas e arcos. Não permitem a profanação a esse recinto sagrado”.

As tabocas grossas descritas pelo explorador boliviano são, provavelmente, da espécie Guadua superba, as de maior diâmetro encontradas nas florestas do Acre, ideais para a construção de habitações, e que ainda hoje podem ser encontradas nas matas que integram a Reserva Extrativista Chico Mendes.

O Deus de madeira, citado por Aponte, coincide com o relatado pelo Cel. Labre, sobre ídolos de madeira polida.

O terceiro relato é do lendário explorador inglês, Cel. Fawcett, que ao chegar nas cabeceiras do Rio Acre, em janeiro de 1907, à serviço do Governo Boliviano, descreve o seguinte:

“Agora havia sinais de índios – rastros na areia e trilhas na floresta. Vimos apenas alguns vultos, os índios tinham o cuidado de, tanto quanto possível, se manter fora do alcance de visão. Aqui e ali um tronco de árvore havia sido esculpido em forma de um cone “a foot high”, provavelmente por um motivo religioso”.

Fawcett descreve os cones de madeira de aproximadamente 30 cm de altura, e deduz serem objetos sagrados, mas não fala da espessura dos tais cones e nem sua posição na margem do rio.

As descrições da existência de campos, como os relatados por Labre, coincidem com o Mapa de Masô (1907-1917) referente à região das nascentes do Rio Iquiry (nas proximidades da atual cidade de Capixaba) que foi classificada como propícia para a Indústria Pastoril. Esses campos possivelmente incluíam os Campos do Gavião, Campo Esperança e Campo Central, todos situados ao longo do varadouro que ligava a Vila de Santa Rosa (Bolívia), nas margens do Rio Abunã, ao Barracão do Seringal Capatará, na margem direita do Rio Acre, propriedade do Cel. Plácido de Castro.

Chama a atenção a ocorrência desses campos, pois essa área era dominada por florestas onde abundavam castanheiras e a seringueiras. Por ser uma região de floresta, essas manchas de campos provavelmente indicam uma origem antrópica. Por essa trilha passaram, além da comitiva do Cel. Labre, as tropas bolivianas que se dirigiam ao Acre para combater os revoltosos acreanos, e ainda o Cel. Percy Fawcett em sua exploração à serviço da Bolívia.

Mais tarde, essa mesma trilha foi usada até meados dos anos 50 para o transporte de gado desde campos no Beni, Bolívia, até a cidade de Rio Branco.

É uma tarefa necessária, buscar nos escritos dos primeiros viajantes-exploradores que caminharam pelas trilhas indígenas do Acre, alguma informação, por pequena que seja, que possa nos ajudar a entender a origem e razões do árduo esforço e do trabalho empenhado, para construir essas estruturas sagradas, verdadeiras “catedrais”, hoje, conhecidas pelo nome de Geoglifo.

Para saber mais:

Aponte, J. M. 1903. La Revolución del Acre. Imprenta El Comercio de Bolívia, La Paz, 468 pp.

Fawcett, P.H. 2001. Exploration Fawcett, Phoenix Press, London, 368 pp.

Labre, A.R.P. 1888. Viagem Exploradora do rio Madre de Diós ao Acre. Revista da Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro, Tomo IV (2), p.102-116.

Labre, A. R. P. 1889. “Colonel Labre’s Explorations in the Region Between the Beni and Madre de Dios Rivers and the Purus.” Proceedings of the Royal Geographic Society and Monthly Record of Geography 11(8):496-502.

Masô, J. A 1907-1917. Território do Acre, Officinas Graphicas da Livraria Francisco Alves & Cia, Rio de Janeiro. (Mapa)

Pessoa, C. 2017. Do Manutata ao Uakiry: história indígena em um relato de viagem na Amazônia Ocidental (1877). Tellus, v. 34, pp. 81-103.

Schaan, D. 2012. Sacred Geographies of Ancient Amazonia – Historical Ecology of Social Complexity. Routledge, N. York, 233 pp.

 

Sair da versão mobile