Os impactos da saúde mental da holandesa Zoraya ter Beek começaram ainda na primeira infância, relatou ela ao jornal britânico The Guardian. Além do diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA), a mulher de 29 anos relata ter depressão crônica, ansiedade, trauma e um transtorno de personalidade não especificado. A jovem tomou medicação e fez diversos tratamentos intensivos, incluindo psicoterapia e mais de 30 sessões de eletroconvulsoterapia (ECT). Conheceu um parceiro. Ainda assim, nada teria ajudado, continuando “a machucar-se e sentir-se suicida”. Então, ela solicitou a eutanásia ao governo, que deverá ocorrer nas próximas semanas.
A história de Ter Beek repercutiu após ser publicada pela rede The Free Press, em abril. Ela disse que decidiu pela morte assistida após seu psiquiatra afirmar que havia tentado de tudo, mas que não havia mais nada que pudessem fazer por ela. Ao Guardian, pouco mais de um mês depois, Ter Beek lembrou que, no início do tratamento, ainda tinha expectativas de que fosse melhorar.
— Na terapia, aprendi muito sobre mim mesma e sobre os mecanismos de enfrentamento, mas isso não resolveu os problemas principais. No início do tratamento, você começa esperançoso. Achei que iria melhorar. Mas, quanto mais o tratamento dura, a esperança começa a se perder — refletiu, afirmando que, após dez anos de tratamento, “não sobrou nada” em que pudesse apostar.
A decisão veio pouco depois do fim das sessões de ECT, em agosto de 2020. Ter Beek contou que passou um período “aceitando” que não havia mais opções antes de solicitar a morte assistida ao governo em dezembro daquele ano.
— Eu sabia que não conseguiria lidar com a maneira como vivo agora — disse ao jornal britânico, afirmando que pensou em suicídio, mas rejeitou a ideia após a morte violenta de uma colega de escola e o impacto provocado na família.
‘Nunca hesitei’
A Holanda foi o primeiro país do mundo a legalizar a eutanásia ativa e o suicídio assistido, seguida pela Bélgica. Ambos os processos também foram descriminalizados em Luxemburgo e na Espanha. A eutanásia foi adotada por Portugal, Equador, Cuba e Colômbia. Na Áustria e na Suíça, onde a eutanásia é proibida, é permitido o suicídio assistido — um procedimento um pouco diferente da eutanásia, no qual a pessoa tem acesso a uma substância letal que é ingerida ou aplicada pelo próprio paciente.
Na Holanda, sob uma lei que entrou em vigor em abril de 2002, uma pessoa pode solicitar a eutanásia quando “passa por um sofrimento insuportável, sem perspectiva de melhora”, pontuando que o pedido deve ser feito “com seriedade e plena convicção”. O texto prevê que um médico e um especialista independente determinem que o paciente sofre insuportavelmente e sem esperança de melhora.
Em 2012, a legislação foi ampliada para autorizar o procedimento a maiores de 12 anos sob grande sofrimento, desde que tivessem consentimento dos pais, e em 2020 a pacientes com demência grave, se o paciente tivesse solicitado o procedimento enquanto ainda mentalmente capaz. O governo holandês, em abril de 2023, também aprovou a eutanásia para crianças menores de 12 anos após anos de debate, permitindo mortes misericordiosas para jovens menores que sofrem “insuportavelmente e sem esperança”.
O procedimento solicitado por transtornos mentais é incomum no país, mas tem aumentado. Segundo dados citados pelo Guardian, em 2010 foram registrados dois casos envolvendo sofrimento psiquiátrico. Em 2023, esse número saltou para 138, cerca de 1,5% do total de 9.068 mortes assistidas.
A mulher explicou que o processo é “longo e complicado”, refutando o imaginário de que, “se você pedisse uma morte assistida na segunda-feira, estaria morto na sexta”. Ter Beek contou que ficou muito tempo na lista de espera para avalição do seu caso, já que há poucos médicos “dispostos a se envolver na morte assistida de pessoas com sofrimento mental”.
— Então, você tem de ser avaliado por uma equipe, ter uma segunda opinião sobre sua elegibilidade, e a decisão deles deve ser revisada por outro médico independente — explicou ao Guardian, afirmando que em cada estágio ouviu a pergunta “tem certeza?” dos médicos: — Nos três anos e meio que isso levou, nunca hesitei na minha decisão.
Quando sua história foi contada pela The Free Press — em reportagem que, segunda a holandesa, teria muitas imprecisões e deturpações —, Ter Beek recebeu uma enxurrada de e-mails, sendo a maior parte deles dos EUA. Ela então excluiu todas as suas contas das redes sociais. As mensagens, ela explicou, sempre pediam “não faça isso, sua vida é preciosa”.
— Eu sei que é [preciosa] — respondeu, acrescentando que algumas pessoas diziam que “tinham uma cura com uma dieta especial”, enquanto outras lhe sugeriram “encontrar Jesus ou Alá” ou disseram que ela “queimaria no inferno”. — Foi uma merda total. Eu não consegui lidar com toda a negatividade.
Ter Beek disse que é “um insulto” as pessoas pensaram que alguém com transtornos mentais “não consegue pensar direito”. Ela, porém, afirmou que é compreensível que casos como o seu, bem como o debate mais amplo se a eutanásia deveria ou não ser legalizada, eram controversos.
— Entendo o medo que algumas pessoas com deficiência têm em relação à morte assistida e a preocupação de que as pessoas sejam pressionadas a morrer. Mas na Holanda já temos essa lei há mais de 20 anos. Existem regras muito rígidas e é muito seguro — afirmou ao Guardian.
Data marcada
A mulher contou ao Guardian que, após conhecer sua equipe médica, sua morte assistida deve ocorrer dentro de algumas semanas. Apesar de já ter sentido medo e culpa em relação a seu companheiro, familiares e amigos, dizendo não ser “cega à dor deles”, Ter Beek disse estar “absolutamente determinada”. A sensação foi descrita por ela como “alívio”.
Na data marcada, que não foi revelada pelo jornal britânico, a equipe irá à casa de Ter Beek, que fica em uma cidade pequena, próxima à fronteira com a Alemanha. Ali, ela vive com dois gatos. Ela explicou todo o procedimento, afirmando que a equipe começará aplicando um sedativo e que nenhum remédio para parar seu coração será aplicado até que ela entre em coma.
— Para mim, será como adormecer. Meu parceiro estará lá, mas eu disse a ele que está tudo bem se ele precisar sair da sala antes do momento da morte — disse.
Reportagem O Globo