A construção de uma pista de aeroporto próximo à cidade histórica de Chichén Itzá, no México, em 1967, levou a uma descoberta surpreendente: duas câmaras conectadas às pirâmides continham ossos de mais de 100 crianças, provavelmente sacrificadas em rituais religiosos. Esses vestígios agora foram alvo de estudos com tecnologias de microscopia de última geração. As análises revelaram pistas sobre a identidade dessas crianças sacrificadas e os motivos de suas mortes.
Em um artigo publicado nesta quarta-feira (12) na revista Nature, pesquisadores mexicanos, europeus e estadunidenses recolheram dados de DNA de 64 crianças e mostraram que, em sua grande maioria, elas eram do gênero masculino. Seu dentição sugere que elas tinham idades entre 3 e 4 anos. Também foi possível concluir que cerca de um quarto das crianças tinha algum grau de parentesco entre si. As amostras acusaram até mesmo que havia gêmeos idênticos enterrados lado a lado.
Sacrifício por milho?
Na época da descoberta das câmaras, não havia técnicas de análise genética avançadas o suficiente para fornecer essas informações, dado o estado de conservação das ossadas. Os ossos estavam em um espaço pequeno, de apenas 3 metros quadrados, e muitos estavam deteriorados pelo tempo, além de apresentarem rachaduras devido a desmoronamentos internos. O fato de serem crianças dificultou ainda mais o processo de identificação, já que o sexo biológico só se torna evidente nas marcas do esqueleto durante a puberdade.
Anos mais tarde, os cientistas conseguiram recolher e analisar o material genético de uma parte específica dos crânios, chamada de petrosa, conhecida por acumular DNA. Dessa forma, foi possível rebater uma hipótese antiga de que os esqueletos pertenciam a meninas, bem como determinar os graus de parentesco entre os sacrificados. De acordo com os pesquisadores, o padrão encontrado pode ser ligado a um importante mito da cultura maia.
“Poucas coisas da arqueologia maia têm um padrão tão claro. A seleção de parentes próximos e gêmeos sugere que eles representem os Heróis Gêmeos”, disse Christina Warinner, coautora do artigo e paleogeneticista da Universidade de Harvard, a revista Science. O conto dos Heróis Gêmeos, ligado à agricultura, narra a história dos irmãos Hunahpu e Xbalanque, que viajam ao submundo, onde são sacrificados e ressuscitados repetidamente, retornando à vida na primavera como pés de milho.
Essa possível associação traz dicas que permitem explicar os rituais de sacrifício. Essa informação é sustentada pela descoberta que as crianças mantiveram dietas semelhantes ao longo de suas curtas vidas. Isso sugere que elas tenham sido criadas nas mesmas famílias — ou, até mesmo, preparadas especificamente para o sacrifício.
Embora não se possa afirmar com certeza sobre as motivações, os autores destacam que tais práticas eram comuns na cultura maia. Segundo tradições e cerimônias descritas no livro de Popol Vuh, um registro documental produzido no próprio século 16, o sacrifício humano pode ter sido considerado um privilégio ou mesmo uma honra, sendo uma parte essencial da manutenção do equilíbrio do cosmos na visão maia.
Impacto da colonização
O estudo foi construído com a ajuda de um banco de dados genético de uma comunidade indígena maia da cidade de Tixcacaltuyub, que já havia doado DNA para pesquisas sobre metabolismo e diabetes. Ao comparar as amostras dos dois grupos, os cientistas encontraram uma proximidade genética de mais de mil anos de distância, assim trançando similaridades e diferenças.
As poucas disparidades encontradas trouxeram uma nova visão sobre o impacto da colonização espanhola, que começou em 1511 na região. Os habitantes atuais de Tixcacaltuyub possuem genes que conferem resistência à bactéria da Salmonella, enquanto as ossadas dos meninos sacrificados, não. A diferença pode indicar que os europeus provavelmente introduziram a Salmonella, o que pode ter estimulado a evolução da resistência entre aqueles que sobreviveram.
“Para as pessoas que vivem nesta área, é muito valioso conhecer e ter certeza de suas raízes”, afirma Ermila Moo Mezeta, pesquisadora indígena maia e coautora do estudo, à Science. “A recompensa é poderosa, reafirmando e dando um nome à forma como estamos ligados ao passado.”
Fonte: Revista Galileu