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Borracha, rebeldes e Rio Branco: a disputa pelo Acre

Por Evandro Ferreira e Alceu Ranzi

Em 1966, o historiador americano Lewis Arthur Tambs publicou o artigo “Rubber, Rebels, and Rio Branco: The Contest for the Acre” (Hispanic American Historical Review, v.46, n.3, p.254-273) enfatizando detalhes da situação política na Bolívia nos anos imediatamente anteriores aos conflitos que resultaram na incorporação do Acre pelo Brasil no início do século XX. Tambs, Engenheiro Industrial com experiência na exploração de petróleo na Venezuela nos anos 50, resolveu trilhar a carreira acadêmica no seu retorno aos Estados Unidos nos anos 60, especializando-se em História da América Latina. Sua tese de Doutorado (Universidade da California,1967), abordou o Brasil: “March to the West: Four Centuries of Luso Brazilian Expansion” (“Marcha para o Oeste: Quatro Séculos de Expansão Luso Brasileira”). Em razão da relevância do citado artigo para a história do Acre, apresentamos, em cinco partes, a tradução na íntegra do extenso texto de Tambs.

Rubber, Rebels, and Rio Branco: The Contest for the Acre

Borracha, rebeldes e Rio Branco: a disputa pelo Acre

Por Lewis Arthur Tambs

Parte 1

Em 1820, um veleiro chegou ao porto de Boston carregando um par de botas de borracha vindas do Brasil. Uma ordem de compra de quinhentos pares foi enviada rapidamente para o Brasil e o boom da borracha começou. Ele custaria milhares de vidas, ergueria uma casa de ópera dourada de 10 milhões de dólares no meio da selva amazónica, reduziria milhares de homens à condição de escravos, construiria uma ferrovia “com cada dormente apoiado num crânio humano” e faria com que a Bolívia perdesse mais de um terço do seu território [1]. A rivalidade entre a Bolívia e o Brasil pelo controle da parte superior bacia amazônica é um efeito secundário pouco conhecido do desenvolvimento económico sul-americano no século XIX.

Nos termos do Tratado de Tordesilhas de 1494, toda a região produtora de borracha da Amazônia estava sob os domínios do Reino de Castela. Apesar do título legal e de uma série de expedições exploratórias, a Espanha travou uma batalha perdida na Amazônia contra o avanço constante dos luso-brasileiros para o oeste, especialmente depois que os portugueses ganharam o controle da foz do rio amazonas em 1580 por meio da união das duas coroas. Durante o século XVIII as duas potências ibéricas trataram de resolver as suas diferenças e em 1777 finalmente delinearam as fronteiras entre a América espanhola e portuguesa no Tratado de San Ildefonso.

Neste tratado, a fronteira luso-castelhana subia pelo rio Paraguai até o lago Xarayes. Cruzava esse corpo até a foz do Jauru e depois atravessava a bacia hidrográfica baixa e pantanosa entre os dois grandes sistemas fluviais da América do Sul, o Amazonas e o La Plata, até cruzar a margem sul do Guaporé. Do Guaporé, a linha continuou em direção ao norte, passando pelo entroncamento Mamoré-Madeira, até um ponto equidistante entre o Amazonas e o Mamoré. Neste ponto, ao norte das corredeiras de Santo Antônio, no Madeira, a fronteira virava para oeste em direção ao rio Javary, perto da base da cordilheira dos Andes. Continuando pelo leito do Javary até a fortaleza portuguesa de Tabatinga, a linha rumava para leste seguindo o complexo fluvial Solimões-Amazonas até a foz mais ocidental do Yapurá. Depois, voltando para noroeste, a fronteira subia o rio antes de cortar por terra até a bacia hidrográfica das Guianas e a costa atlântica.

O Artigo XV do Tratado de San Ildefonso exigia que a demarcação da fronteira fosse feita por uma comissão conjunta. Esta tarefa foi realizada na área do Prata, mas na bacia amazônica seu trabalho foi frustrado pelos índios selvagens, pela selva densa, pela obstrução portuguesa e pela eclosão da guerra com a Espanha durante 1801. A falha em delinear a fronteira antes das Guerras de Independência levou a um século de litígios e fez com que as repúblicas hispano-americanas perdessem a maior parte do seu património amazônico [2].

Dois anos após a chegada das primeiras botas de borracha a Boston, o Brasil declarou a sua independência da pátria portuguesa. Em 1825, a América do Sul espanhola estava livre dos Bourbons e, embora cada nação se considerasse herdeira legítima de sua respectiva pátria-mãe, os brasileiros recusaram-se a reconhecer a validade do Tratado de San Ildefonso. Ignoraram também o artigo VII do Tratado de Amiens, que apelava ao regresso ao status quo ante bellum, e denunciaram o artigo CV da Acta Geral do Congresso de Viena. Este artigo estipulava que Espanha e Portugal, como potências signatárias, regressariam ipso jure aos seus limites anteriores à guerra.

Em vez disso, o Brasil alegou que a guerra de 1801 com a Espanha e o fracasso na construção de marcos anularam o Tratado de San Ildefonso e exigiu que todas as questões territoriais fossem decididas com base no princípio do uti possidetis de facto. Embora a Bolívia se considerasse herdeira da Audiência de Charcas e reivindicasse o Alto Amazonas entre o Madeira e o Javary, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro rejeitou esta reivindicação, apontando que a Bolívia também havia renunciado ao Tratado de San Ildefonso em 1838, quando fazia parte de uma confederação com o Peru. Essa confederação revogou o Tratado de 1777 com a clara intenção de restabelecer o Tratado de Tordesilhas. Depois disso, a Bolívia negou esta ação após o colapso da confederação com o Peru. Nenhum destes argumentos teve o menor efeito na chancelaria brasileira [3].

O repúdio brasileiro ao Tratado de 1777 e a insistência no princípio do uti possidetis de facto significavam que somente a ocupação real determinaria as fronteiras entre as duas nações. Consequentemente, a Bolívia reagiu tentando colonizar as áreas fronteiriças praticamente desabitadas. Já em 1832 o Congresso boliviano criou a província de Otuquis e concedeu, em perpetuidade, a concessão de colonização de cerca de 40 mil km² ao longo do alto rio Paraguai a um cidadão argentino, o major Manuel Luis de Oliden. A concessão de Oliden permitia uma remissão de impostos durante cinquenta anos e autorizava o donatário a nomear todos os funcionários locais.

Contudo, independentemente de quantos direitos recebesse, Oliden só poderia prosseguir com o acordo se as comunicações estivessem disponíveis. Dois anos depois, o governo de Andrés Santa Cruz procurou resolver esse problema oferecendo um prêmio em dinheiro a qualquer comandante de navio a vapor que conseguisse chegar ao solo boliviano pelas rotas fluviais Amazonas-Madeira ou Paraná-Paraguai. No entanto, estas artérias atlânticas foram fechadas ao tráfego internacional por decreto brasileiro. Em um esforço para abrir rotas comerciais para o mar, La Paz enviou o general Mariano Armaza ao Rio de Janeiro em 1834, armado com poderes plenipotenciários para resolver todas as disputas territoriais e de navegação pendentes entre as duas nações. Os regentes imperiais recusaram-se a negociar, alegando que não possuíam dados suficientes para discutir o assunto [4].

Outros esforços bolivianos para defender a reivindicação não tiveram maior sucesso. Uma década depois, o Major Oliden, concessionário da província de Otuquis, apareceu no Rio com um mapa de 1842 indicando que grandes extensões de território há muito ocupadas pelo Brasil estavam sob seu domínio. Além disso, Oliden tentou vender sua concessão ao ministro britânico, Charles J. Hamilton, que recusou a oferta porque “a área, com exceção de algumas plantas medicinais, continha apenas árvores de caucho, que, tanto quanto sabia Sua Excelência, tinham apenas um valor, o de apagar marcas de lápis” [5].

Destemido, Oliden abordou um sindicato inglês, Juan Manuel de Rosas, em Buenos Aires, e, através de um agente, capitalistas do Norte da Alemanha em Hamburgo. No porto alemão, a comercialização bem-sucedida de botas de borracha provenientes da fábrica de Johan Nepomuk Reithofer, em Viena, despertou o interesse pelas seringueiras, e o agente de Oliden encontrou capital suficiente para estabelecer uma empresa dedicada à exploração da província de Otuquis. O esquema fracassou, no entanto, devido a distúrbios na Bolívia durante a Guerra del Oriente [6].

O mau destino perseguiu esforços semelhantes do presidente José Ballivián da Bolívia. Em 1844 ele enviou ao Rio de Janeiro o general Eusébio Guillarte e uma delegação, em mais uma tentativa infrutífera de negociação. Ele também procurou afirmar a soberania boliviana na orla oriental criando o departamento de Beni e Apolobamba, tentando abrir as comunicações entre o altiplano e o rio Paraguai, guarnecendo Guajará-Mirim no rio Mamoré e fazendo o levantamento das quedas do Madeira. Ele até contratou uma empresa de colonização fundada pelo rei Leopoldo I da Bélgica para assentar imigrantes europeus em um milhão de acres de solo boliviano. Mas depois da derrubada de Ballivián em 1847, todos estes projetos foram abandonados. A Bolívia caiu em tal desordem que, em 1851, quando o Brasil enviou Duarte de Ponte Ribeiro às repúblicas do Pacífico para resolver a questão fronteiriça, ele não conseguiu nem mesmo abrir negociações na Bolívia. Assim, a disputa fronteiriça entre o Brasil e a Bolívia permaneceu sem solução durante os doze anos seguintes [7].

(Artigo continua na parte 2)

Para saber mais: as sete (7) referências citadas no texto estão indicadas entre colchetea. O link para acessar as mesmas na íntegra é o seguinte: https://doi.org/10.1215/00182168-46.3.254

Lewis, A. T. (1966). Rubber, Rebels, and Rio Branco: The contest for the Acre, Hispanic American Historical Review 46 (3):254-273. Link para acesso: https://doi.org/10.1215/00182168-46.3.254

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