*Por Tião Viana e Gilberto Braga Mello
Existem diversas formas de atacar a democracia. Pode ser de jeito bárbaro, como no 8 de Janeiro. Mas também pode ser cavilando a civilidade, como fazem agora congressistas que tecem loas à liberdade e à segurança patrimonial para brindar latifúndios improdutivos contra a função social da terra. Em um país continental e tão desigual como o Brasil, é um atentado contra a democracia brasileira a chamada pauta anti-MST que avança no Congresso para criminalizar a luta pela reforma agrária. Ela fere princípios consagrados na Constituição.
Pelo menos 3 projetos dentre uns 20 da pauta anti-MST tipificam a invasão de terra como terrorismo. Nem a ditadura militar foi tão longe.
O próprio general Castello Branco e outros autoproclamados democratas, como Costa e Silva e Roberto Campos, até assinaram o Estatuto da Terra, a lei 4.504 de 30 de novembro de 1964, cujo art. 2º declara: “É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela função social…”. E completa na sua alínea A que é dever do Poder Público “promover e criar as condições de acesso do trabalhador rural à propriedade da terra economicamente útil”.
Querer agora tipificar a invasão de terra como terrorismo é criminalizar a “oportunidade de acesso” à terra. Isso é matar a possibilidade de reforma agrária e desconstituir qualquer pretensão democrática.
A pauta anti-MST torna “terrorista de invasão” pessoas como João Pedro Teixeira, Chico Mendes, Wilson Pinheiro, irmã Doroty e outros mártires da questão agrária, como os 21 sem-terra chacinados em Eldorado do Carajás. A lembrança é necessária para dar ideia do perigo que é autorizar fazendeiros a acionar a polícia contra invasores sem ordem judicial, como quer a pauta anti-MST.
O pacote também converte conquistas dos brasileiros mais pobres em “prêmio de bom comportamento”, proibindo quem participar de invasões de acessar a programas de reforma agrária, crédito rural e outros benefícios do governo federal, além de ficar inelegível e vetado para cargos públicos por 8 anos. Ah, também querem vetar seu acesso ao Minha Casa, Minha Vida –quando o que o Brasil precisa é criar o “Minha Terra, Minha Vida”.
Em 40 anos de vida, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se tornou a mais consistente iniciativa pela reforma agrária da história do Brasil. Moderno e resiliente, ele é capaz de trabalhar com as novas tecnologias e se colocar na era digital.
Em um país onde a população urbana chega a 85%, o MST cria perspectivas de fixar famílias no campo para produzir alimentos saudáveis, fortalecer cadeias produtivas para a agroindústria e assegurar a função social nessas terras em que, segundo Caminha, “em se plantando tudo dá”. Mas que, em 500 anos, os herdeiros das capitanias hereditárias não conseguiram os “níveis satisfatórios de produtividade” cobrados no Estatuto da Terra.
Então, que nossos liberais se mirem nos herdeiros anglo saxônicos estimulando a ocupação de terras improdutivas para construir a riqueza dos Estados Unidos. Hoje, 90 milhões de estadunidenses são descendentes de famílias que invadiram e depois tiveram pequenas propriedades rurais regularizadas pelo Estado.
Um olho no padre, outro na missa –pois vem aí eventos capazes de ocupar a atenção da sociedade, como as eleições municipais e o duelo entre Kamala e Trump, esse com poder de inflar a extrema-direita ou salvaguardar a democracia mundo afora. O Brasil precisa estar atento.
Em Brasília, há quem conte com o descuido da opinião pública para fazer a boiada passar no Congresso. E para o gado, a pauta anti-MST é a comitiva da vez.
*Tião Viana, 63 anos, é professor de medicina na UnB (Universidade de Brasília). Graduado pela Universidade do Pará, tem doutorado em medicina tropical pela UnB e especialização em infectologia pelo Instituto Emílio Ribas. Foi senador por 2 mandatos, líder do PT no Senado em 3 ocasiões e presidiu interinamente a Casa Alta em 2007, depois da renúncia do senador Renan Calheiros. Governou o Acre por 2 mandatos consecutivos, de 2011 a 2019.
*Gilberto Braga Mello, 63 anos, é jornalista e publicitário. Tem MBA em marketing pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e vasta experiência em redação, projetos de comunicação e marketing político. Nos últimos 20 anos, dirigiu projetos e campanhas na Amazônia e em diversos Estados do país. Atualmente, trabalha a partir de Brasília.