O cheiro de fumaça tomou conta das ruas, o céu escureceu em pleno meio-dia, e os mais de 360 mil moradores de Rio Branco, assim como de outras regiões do Acre, enfrentaram dias sufocantes em setembro de 2024. A concentração de partículas finas com diâmetro inferior a 2,5 micrômetros alcançou alarmantes 605 microgramas por metro cúbico (µg/m³), segundo dados de plataformas internacionais de monitoramento. Esse nível de poluição é considerado “perigoso” e coloca em risco a saúde da população.
Neste cenário, a Rede Acreana de Monitoramento da Qualidade do Ar, criada pelo Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), despontou como uma ferramenta essencial para medir, compreender e combater a crise de poluição. A iniciativa conquistou o 2º lugar no Prêmio CNMP 2024, na categoria Sustentabilidade.

Projeto que transforma dados em soluções
Os dados coletados pela Rede em tempo real são mais do que números: são um espelho da realidade, que expõe a gravidade das queimadas e de suas consequências. Segundo o promotor de Justiça Luis Henrique Rolim, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Caop-Maphu), o projeto oferece informações científicas inquestionáveis.
O projeto monitora a qualidade do ar com base nos dados de 31 sensores instalados em 22 municípios acreanos, por meio da parceria estabelecida entre o MPAC e pesquisadores da Universidade Federal do Acre (Ufac), juntamente com a Fundação de Apoio e Desenvolvimento ao Ensino, Pesquisa e Extensão Universitária no Acre (Fundape).
Em 2024, o Acre registrou um total de 8.658 focos de incêndio, um aumento de 32% em relação a 2023. Somente em setembro, foram 3.855 focos, quase o dobro de agosto. Naquele mês, a capital acreana ficou, por vários dias, como a cidade com a pior qualidade do ar do Brasil. Esses números tornam ainda mais relevante o trabalho da Rede, que utiliza sensores de baixo custo e alta tecnologia para fornecer dados precisos aos órgãos públicos, pesquisadores e para a própria população.
“Os dados da Rede não deixam dúvidas sobre a quantidade de matéria particulada depositada na atmosfera. Isso permite às instituições, como por exemplo, a Secretaria de Saúde, desenvolver políticas públicas, especialmente porque a poluição do ar afeta, sobretudo, a respiração, a saúde pulmonar da população”, explicou o promotor de Justiça Luis Henrique Rolim, coordenador do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente (Caop-Maphu).

Conforme o promotor, os dados coletados também embasam ações de órgãos ambientais no combate às queimadas, inclusive, subsidiando medidas legais e administrativas contra práticas ilegais de queimadas.
“Esses dados permitem ainda o diálogo com os órgãos ambientais para que eles possam também desenvolver ações de combate às queimadas, especialmente as que dão origem a essa poluição atmosférica. Ou seja, é possível a intensificação das ações por parte dos órgãos ambientais, porque esses dados são científicos e se mostram como uma evidência científica e probatória dos fatos que são combatidos por esses mesmos órgãos”, destacou.

Reconhecimento nacional
Ao conquistar o 2º lugar no Prêmio CNMP 2024, o projeto do MPAC se consolidou como referência em sustentabilidade. A iniciativa competiu com outros grandes projetos nacionais e destacou o papel do Ministério Público do Estado do Acre em liderar ações inovadoras em prol da sociedade.
A idealizadora do projeto, a procuradora de Justiça Rita de Cássia Nogueira, celebrou o reconhecimento e destacou a iniciativa como ferramenta de conscientização sobre a importância da qualidade do ar para a saúde, bem como da preservação do meio ambiente.
“Esse prêmio é resultado de um esforço coletivo, foi um trabalho feito a muitas mãos, pelo MP, UFAC, Fundape, Tribunal de Justiça, pelos nove promotores que colaboraram destinando valores das prestações pecuniárias para a aquisição de sensores, prefeituras e a Polícia Militar, enfim, foi um trabalho conjunto para levar conscientização sobre um tema tão fundamental e melhorar a saúde das pessoas. Ficamos extremamente felizes com a nossa premiação, isso demonstra o reconhecimento do trabalho de grande impacto para a sociedade que o Ministério Público do Estado do Acre vem fazendo”, enfatizou a procuradora.

Impacto na vida dos acreanos
A importância do projeto vai além dos órgãos públicos e da academia. Ao fornecer informações precisas sobre a qualidade do ar, a Rede ajuda a conscientizar a população sobre os riscos à saúde causados pela poluição. Essa conscientização é essencial para promover mudanças de comportamento e cobrar ações mais efetivas das autoridades.
Em 4 de outubro de 2024, um episódio reforçou o impacto das queimadas no estado: uma nuvem de fumaça aliada a uma formação meteorológica escureceu o céu de Rio Branco ao meio-dia, deixando postes acesos em pleno dia. Situações como essa evidenciam a urgência de iniciativas como a Rede Acreana de Monitoramento da Qualidade do Ar.

Uma articulação de muitas mãos
O projeto é fruto de um esforço coletivo entre o MPAC, a Ufac, a Fundape e o Tribunal de Justiça do Acre, entre outros parceiros. Desde 2020, quando foi idealizada pela procuradora de Justiça Rita de Cássia Nogueira, a iniciativa buscou conscientizar a população sobre a relação entre a qualidade do ar e a saúde.
Apesar dos avanços, a manutenção do projeto ainda é um desafio. De acordo com o promotor Luis Henrique Rolim, a articulação para garantir o funcionamento da Rede é contínua. “Estamos dialogando com o governo estadual, especialmente a Secretaria de Meio Ambiente, para que assumam os custos operacionais. O MPAC tem sustentado a Rede até agora, mas queremos que o estado assuma sua responsabilidade e permita otimizações”, afirmou.

“Estamos caminhando com esse diálogo para que o governo estadual, especialmente por meio da Secretaria de Meio Ambiente, possa assumir os custos da manutenção da rede de monitoramento, porque esses custos não são apenas para mantê-la, mas também a necessidade de troca de sensores, de melhorias que devem ser feitas constantemente e, para isso, necessita de recursos. Quem tem mantido hoje é o Ministério Público do Acre, diante da perspectiva da importância dessa rede, mas nós precisamos que isso seja algo mais efetivo. E, como a própria Secretaria de Meio Ambiente e a Secretaria de Saúde do Estado utilizam dos dados da rede de monitoramento para a elaboração de suas políticas públicas, nada melhor do que o próprio Estado arcar com essas despesas. Até para que nós possamos otimizar e melhorar ainda mais a rede”, afirmou Rolim.
O projeto também se destaca pelo impacto acadêmico. Professores da Ufac utilizam os dados gerados para desenvolver pesquisas científicas, que, posteriormente, são encaminhadas ao Ministério Público. “Esses estudos fortalecem nossas solicitações por políticas públicas e subsidiam ações civis e investigações em diversas áreas, como saúde e meio ambiente”, concluiu o promotor.

Um olhar técnico sobre a iniciativa
O professor e pesquisador da Ufac, Irving Foster Brown, destacou a importância da Rede Acreana de Monitoramento da Qualidade do Ar para dimensionar o problema da poluição atmosférica no estado. Ele ressaltou que, sem medidas concretas da qualidade do ar, é impossível avaliar a gravidade do problema ou a eficácia de políticas públicas.
“Para encontrar soluções de um problema, primeiro é necessário dimensionar o tamanho do problema. Sem medidas de poluição do ar é muito difícil saber a gravidade do problema e se ações via políticas públicas estão solucionando-os”, afirmou.
Brown também destacou o papel da rede na coleta de dados fundamentais para monitorar a qualidade do ar, especialmente durante períodos críticos, como a temporada de queimadas.
“Por causa da rede de sensores foi possível medir o nível de poluição. Comparando setembro de 2023 e setembro de 2024, podemos notar quanto material particulado fino estávamos respirando. Como referência, a Organização Mundial da Saúde, coloca o limite diário de 15 microgramas por metro cúbico e tivemos semanas em setembro com concentrações médias semanais de mais de seis vezes este valor. Em estudos independentes, pesquisadores da Universidade de Chicago estimaram que estamos perdendo de 2 a 4 anos na expectativa de vida no Acre por causa da fumaça na época de queimadas. A fumaça não é gerada sozinha. A sociedade pode exigir ações sociais e governamentais para reduzir as fontes destes poluentes ou vai precisar se acostumar a respirar fumaça das queimadas e perder anos de expectativa de vida”, destacou o pesquisador.