Meu gatinho me mordeu ontem à noite. Uma mordida forte, meio profunda. Conversávamos, minhas duas filhas e eu, na cama, passava de meia noite e a gente ia empolgada no assunto. Uma falando meio por cima da outra, concordamos com o raciocínio e, portanto, havia palmas e “sim, sim, total”, e isso e aquilo, talvez o volume estivesse também um tanto mais alto do que a hora da noite permitia. Rilke foi se agoniando, mordeu o travesseiro, correu de um lado pro outro, deitou no meu colo, até que sem mais nem porque mordeu. Mordeu e ficou agarrado na perna sem soltar. Demorou alguns segundos. Eu gritei, tirei ele do quarto, as meninas se assustam porque tinha sangue na perna, no lençol, na minha mão, na camiseta. Aquelas providências todas, lava com água e sabão, aperta pra estancar, fecha a porta do quarto, o gato vai dormir na sala hoje, boa noite, boa noite e o silêncio.
Ele miou sofrido do lado de fora, minha raiva arrefeceu, silenciosos os dois, decidimos por fazer as pazes. Quando subiu no colchão, me olhou meio manso, olhei de volta e lembrei na hora do verso do outro Rilke, o poeta. “Só: da boca o que faço agora? Que faço do dia, da noite?”. Era como se nós dois nos perguntássemos. Rilke está conosco há 5 anos e, nesse período, nunca tínhamos nos aproximado de tamanha discórdia.
Passada a noite, tomei as providências que cabem a um humano numa cena como essas, revi minha carteira de vacinação, a dele, vou começar o antibiótico (consultada a infectologista – minha irmã). Já Rilke anda pela casa sozinho, meio sem saber do dia “da boca o que faço agora?”.
Sigo pensando nisso, na diferença entre nossas reações diante do que se deu. Eu pensando na vacina da raiva (e é mesmo preciso pensar sobre ela), mas não só nela. E ele amargando sabe-se lá que tipo de raiva de mim, ou confusão, angústia (?). Fiz um esforço consciente pra não ficar de mal. Por que, né? Agora há pouco fui buscar água e lembrei de um outro verso de Rilke que diz: “Os homens, com o auxílio das convenções, têm resolvido tudo com facilidade e pelo lado mais fácil da facilidade; mas é claro que precisamos ater-nos ao difícil.” Pois que resolvi abraçar a raiva que estou sentido do gato. É difícil refazer relação, dá trabalho, mais fácil engolir o que incomoda e fazer as pazes, como se nada. Funciona? Pra quem? Quero mais não. Nem com ele, nem com ninguém. Pois boa semana, queridos (se atendo ao difícil, se for preciso).