Em agosto do ano passado, um pastor de ovelhas encontrou o esqueleto de um homem na província austríaca do Tirol. Após exames, a vítima foi identificada. Era um alpinista alemão, desaparecido em 1967. O corpo, soterrado pela neve por quase seis décadas, reapareceu 700m abaixo do pico da Geleira de Wasserfallferner.
O fato não foi isolado: a polícia local afirmou que está cada vez mais comum encontrar remanescentes humanos em glaciares. Em um momento de aquecimento global sem precedentes, cadáveres de alpinistas há muito procurados emergem como mais um sinal da crise climática, que coloca em risco o futuro dos gigantes de neve.
Recentemente, o Serviço Mundial de Monitoramento de Geleiras (WGMS), a Universidade de Edimburgo e o grupo de pesquisa Earthwave alertaram que, na última década, o derretimento das geleiras se acelerou em todo o mundo. Importantes reguladores climáticos e reservatório de 70% da água doce do planeta, metade dos cerca de 200 mil glaciares deve desaparecer até o fim do século, mesmo que a ambiciosa meta de limitar o aquecimento a 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais seja atingida. Além da insegurança hídrica e alimentar, uma das consequências é o aumento do nível do mar.
As Nações Unidas declararam 2025 o Ano Internacional da Preservação das Geleiras e o início da Década de Ação da ONU para Pesquisa Criosférica (2025-2034). É uma tentativa de frear o derretimento de formações que levaram milênios para transformar flocos de neve em gelo. “O fim das geleiras e os impactos do aumento no nível do mar não estão restritos a um país”, lembra Jerome Neufeld, pesquisador da Universidade de Cambridge no Reino Unido, integrante da iniciativa. “Um esforço verdadeiramente internacional é necessário para descobrir como podemos proteger esses recursos.”
Opções
Segundo Shaun Fitzgerald, diretor do Centro de Reparo Climático de Cambridge, reduzir as emissões de gases de efeito estufa é essencial para tentar salvar as geleiras. Porém, não basta. “Precisamos explorar opções potenciais que ajudem a protegê-las enquanto reduzimos os gases de efeito estufa a níveis sustentáveis”, alega.
A equipe destaca três prioridades no enfrentamento ao derretimento dos glaciares. Primeiro, em cooperação com comunidades e partes interessadas, o programa avaliará, testará e desenvolverá sistematicamente novas abordagens técnicas que podem ajudar a desacelerar a perda de gelo em escala local.
Segundo, buscará mitigar os impactos do derretimento nas centenas de milhões de pessoas que vivem à sombra de terras montanhosas, incluindo sistemas de alerta precoce. Por fim, o programa estabelecerá um biobanco único — um zoológico microbiano — para salvar a biodiversidade das geleiras para as gerações futuras e aproveitar seu potencial genético para mitigar as consequências das mudanças climáticas.
“Como os maiores ecossistemas de água doce da Terra, as geleiras abrigam uma biodiversidade única e são o lar de dezenas de milhares de espécies microbianas”, destaca Fitzgerald.
As ações são urgentes diante do cenário encontrado por uma equipe internacional de pesquisadores: separadas das camadas de gelo continentais na Groenlândia e na Antártida, as geleiras cobriam uma área de 705.221 km2 e continham 121.728 bilhões de toneladas de gelo globalmente em 2000. Desde então, geleiras perderam cerca de 5% de seu gelo. Regionalmente, entre 2% nas Ilhas Antárticas e Subantárticas e 39% na Europa Central.
Em um artigo publicado neste mês, na revista Nature, os cientistas relataram que as geleiras perdem 273 bilhões de toneladas, com um aumento de 36% da primeira (2000-2011) para a segunda (2012-2023) metade do período. “A perda de massa das geleiras é cerca de 18% maior do que a da camada de gelo da Groenlândia, e mais do que o dobro da camada de gelo da Antártida”, compara Michael Zemp, pesquisador da Universidade de Zurique, na Suíça, e coautor do estudo.
“As regiões com geleiras menores estão perdendo-as mais rapidamente e muitas não sobreviverão a este século”, adverte Zemp. Segundo o cientista, que dirige o Serviço Mundial de Monitoramento de Geleiras (WGMS), o estudo sugere que os glaciares estão diminuindo a um ritmo mais rápido do que o estimado no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU. “Portanto, enfrentamos uma elevação do nível do mar maior do que o esperado até o fim do século.” Entre as consequências estão o prejuízo ao fornecimento de água doce, especialmente na Ásia Central e nos Andes, e a elevação do nível do mar.
2cm
Semp explica que a perda global de massa de geleiras de 6,542 bilhões de toneladas entre 2000 e 2023 contribuiu para um aumento de 18mm no nível do mar, a uma taxa anual de 0,75mm ao ano. Assim, os glaciares são o segundo maior contribuinte para a elevação dos oceanos: mais do que as contribuições da perda de camada de gelo da Groenlândia e da Antártida. Em primeiro lugar, está o aquecimento dos mares.
“Quase 2cm pode não parecer muita coisa, mas essa é a contribuição somente das pequenas geleiras, e não de todo o gelo do planeta, não da Groenlândia e da Antártida”, comenta Martin Siegert, professor de Geociências da Universidade de Exeter, no Reino Unido. “Essa pesquisa é preocupante para nós porque prevê mais perda de geleiras, o que pode contribuir com muito mais elevação do nível do mar neste século e além. O IPCC calcula de 0,5m a 1m até 2100, mas isso é com 66% de certeza. Portanto, há um terço de chance de que possa ser maior sob um aquecimento mais forte, que, infelizmente, é o caminho em que estamos atualmente.”
Por Correio Braziliense