Normalizado que a famosa frase de Simone do Beauvoir em O segundo sexo – “não se nasce mulher, torna-se mulher” – inaugurou o feminismo moderno. Tratava-se de distinguir o sexo biológico, aquele definido pelo nascimento, da construção social da feminilidade, isto é, do conjunto de atributos estereotipados presentes na socialização das meninas e que a sociedade exige das mulheres.
A partir daí, construiu-se a ideia da diferença entre o sexo (ancorado na biologia) e o gênero (os papéis sociais). Ainda que com polêmicas, e mesmo com algumas autoras recusando o rótulo “gênero” por variados motivos, este foi um chão comum à maior parte das elaborações feministas da segunda metade do século XX.
A visão conservadora sempre negou esta distinção, afirmando que as características socialmente atribuídas às mulheres seriam uma derivação automática do sexo biológico. É o discurso que hoje reaparece com total nitidez nas lideranças políticas, nas tradwives do TikTok, nas pregações de tantos padres e pastores: as mulheres são naturalmente destinadas às tarefas domésticas, ao cuidado com as crianças, à maternidade, à família.
Uma visão convencional da maternidade como destino e vocação da mulher (que Elisabeth Badinter desmontou há décadas, com seu livro sobre o mito do amor materno) organizando a afirmação da diferença natural das mulheres em relação aos homens.
O papa Wojtyla (João Paulo II) deu formulação teológica a isso, afirmando que Deus insufla na alma das mulheres um componente extra, que as torna “especialistas do amor” – isto é, prontas a servir, a sacrificar seus próprios interesses, à submissão, enfim.
Wojtyla contribuiu para a espantosa jogada de marketing e fez seu próprio discurso ideológico de legitimação da dominação masculina circular como se fosse a crítica ao que, no Brasil, chamam de “ideologia de gênero”.
(Embora aqui os evangélicos sejam mais barulhentos, o núcleo da doutrina foi elaborado por católicos ultraconservadores.)
O sentido é claro. Qualquer recusa à naturalização dos papéis diferenciados de homens e mulheres deve ser combatida.
Nos últimos tempos, um novo discurso recusa a ideia do sistema sexo/gênero. A partir, sobretudo, do sucesso da obra da filósofa Judith Butler, inaugurou-se um caminho que termina na negação da materialidade do sexo biológico.
Em Problemas de gênero, de 1990, que continua sendo seu livro mais influente, Butler defende que a um sistema binário de sexos não precisa corresponder um sistema binário de gêneros, uma vez que a relação sexo/gênero não é necessária, nem automática. Diz ela: “A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre gênero e sexo, na qual o gênero reflete o sexo ou é por ele restrito”.
O problema é que ela desloca a discussão para um campo considerado irrelevante. O que está em jogo não é “a hipótese de um sistema binário dos gêneros”. Não é uma hipótese. Nós vivemos um sistema binário dos gêneros, no qual, sem “refletir ou ser por ele restrito”, cada gênero está intimamente associado a um sexo biológico. É na contramão disso que se estabelece o discurso feminista sobre o caráter contingente da conexão entre atributos sociais de gênero e o sexo biológico.
Assim, o feminismo não se estabelece contra uma “hipótese”. Ele se estabelece contra o modelo dado de relação sexo/gênero. Por outro lado, o gênero “refletir o sexo ou ser por ele restrito” é próprio do sentido de “gênero”. Sem essa vinculação, podemos ter algum tipo de “performance”, mas não há por que considerá-la “gênero”.
Mesmo as performances transgressoras que tanto fascinam Butler – drag queens, femme/butch – só ganham esse estatuto na medida em que parodiam o sistema binário, a relação mimética estabelecida entre sexo e gênero.