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As entranhas do porco

Meu namorado diz que quem volta igual de uma viagem não precisava nem ter viajado. É mesmo, né? Ou a gente se deixa transformar (seja a viagem da natureza que for), ou a vida perde quase toda a graça. Mesmo assim confesso ter me sentido um pouquinho pressionada hoje cedo, no primeiro dia do pós-férias. Será que fui competente na tarefa de mudar ou voltei igual que nem?

As semanas de Japão foram impressionantes, disso não tenho dúvida. Há um jeito de estar no mundo meio outro do outro lado do mundo. Vocês assistiram Dias Perfeitos? Sabe aquele “todo dia ele faz tudo sempre igual” que dá uma admiração e um espanto do mesmo tanto? Senti isso o tempo todo. Fora que viajei com minha irmã e minha mãe. Foram 15 dias dormindo e acordando com elas. Não fazíamos isso desde 1991, o último ano em que moramos as 3 juntas. Quem volta igual de uma imersão familiar não precisava nem ter mergulhado, né?

Chegamos na semana exata em que as cerejeiras floresceram em Tóquio, as flores duram 7 dias. Todo dia de manhã, minha irmã acordava mais cedo, meditava, fazia sua série de Yoga, tomava chá e caldinho quente. Todo dia minha mãe nos lembrava de nossa sorte de estarmos juntas, elogiava as lichias descascadas, se comovia com a beleza das flores. Sabe aquele “todo dia ela faz tudo sempre igual” que dá uma admiração e um espanto do mesmo tanto? Senti isso o tempo todo.

Numa visita a um jardim, escutamos a explicação de que parte do simbólico da terra “penteada” – aquela que a gente reproduz com ferramentas pequenininhas nos jardins em miniatura – era o estar preparado, acordar de manhã e preparar-se. Aquilo entrou tão fundo em mim. Uma moça do meu lado não conteve a angústia de urgência de utilidade tão ocidental nossa: preparado pra que?, perguntou. Ué, pra ver as flores, só duram 7 dias. Assim como quem acorda mais cedo e estica o tapetinho de yoga no quarto de hotel, assim como quem não cansa de elogiar a lichia descascada, assim como quem dobra o futon sabendo que vai desdobrar no fim do dia.

Hoje eu cheguei mais cedo no consultório pra arrumar a sala pro primeiro analisando da segunda-feira. Em cima de minha mesa o caderno estava aberto com notas que tomei na sexta pré-férias. Eram 6 itens: 1. As entranhas do porco; 2. Dois dentes do Carlos Augusto; 3. Não esquecer, 15h30; 4. Olhar atravessado; 5. Só se for verde; 6. Página 27 e 33. Foi eu que escrevi, é minha caligrafia, mas foi outra eu. Não faço a menor ideia do que Roberta de lá tinha que fazer às 15h30, deve ter esquecido, que olhar foi esse, de que livro eram as páginas 27 e 33, o que havia de maduro ou de verde, quem é Carlos Augusto ou por que me preocupavam as entranhas do porco. Talvez eu não tenha voltado igual. Muita terra ainda pra pentear nesse jardinzinho, minha gente. Feliz por estar de volta com vocês e ainda pensando na profundidade de mergulho. Boa semana, queridos.

 

 

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