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O enigma de um dia

Abandonei meu mestrado meses depois da qualificação. Se a vida acadêmica fosse vida religiosa, seria considerado um pecado. A qualificação é uma pré-apresentação do projeto. É como se a instituição assinasse embaixo pra você fazer as correções de rota necessárias e entregar de uma vez o trabalho pronto. Tava quase pronto, mas desisti bem ali. Isso faz uns 20 anos. Aí que passei a fazer um milhão de pós-graduações pra compensar o não mestrado.

Fui feliz com quase todas. Só que tem sempre uma melhor. Era uma pós em teoria de arte no MAC da USP. No MAC mesmo, lá dentro do museu, quando a sede ainda ficava na cidade universitária. Eu entrava naquele lugar como quem entra em uma igreja, num respeito, numa devoção. Eram duas aulas na semana, quase sempre no auditório. Mas às vezes a gente ia na sala de exposição estudar uma obra ou um artista específico. Nesses dias eu sentia uma vontade tão grande de que o mundo inteiro estivesse ali. O mundo inteiro. O povo que já morreu e o povo que ainda vai nascer. Todo mundo tinha que ter o direito de estar no museu fechado para visitantes olhando pra cada milímetro de um pouco mais de 1 metro quadrado de tela que são ao mesmo tempo um pouco mais de 1 metro quadrado de tela e o mundo inteiro. Eu saía dessas aulas com um pulmão de 20 metros quadrados. Dava pra respirar uns 20000 litros de ar por minuto com meu pulmão novo.

A sede do MAC mudou e toda vez que encontro um dos quadros que estudamos na sede nova, meu pulmão cresce mais um pouquinho. Ontem fui conhecer o anexo do MASP. Há qualquer coisa no ambiente de um museu que nos altera mesmo o fôlego. Vão lá, minha gente (nas terças e nas sextas a partir das 18h o ingresso é gratuito). Entrei na sala do segundo andar onde está a vídeo-instalação de Isaac Julien e fiquei assim meio boba. Eram 9 telas dispostas umas de frente para as outras. Nas telas, espaços projetados por Lina Bo Bardi, textos dela lidos por Fernanda Montenegro e Fernanda Torres e o Balé Folclórico da Bahia em coreografia de Zebrinha. Cheguei na metade da projeção sem entender muito o que estava acontecendo, quase desatenta, até que uma bailarina (meio orixá, meio bailarina) começa a girar a saia vermelha diante da escada do MAM da Bahia. Eu lembro do primeiro dia que fui ao MAM da Bahia com a mesma nitidez do dia que desisti do mestrado. Tudo ao redor meio sem foco – Por que fui? Com quem eu estava? Fazia calor ou frio? O que estava exposto? No museu e na desistência – mas uma imagem ficou inteira preservada dentro de mim: a da escada. Nunca esqueci da escada do MAM da Bahia. Pesquisando sobre a vídeo instalação, vi que ela se baseia na seguinte citação de Lina Bo Bardi. “O tempo não é linear, é um maravilhoso emaranhado no qual, a qualquer momento, fins podem ser escolhidos e soluções inventadas, sem começo nem fim”. Igualzinho à escada. Acordei pensando no giro, no sobe e desce do tempo e no meu desejo de fôlego pra mim, pra tu e pra todo mundo. O povo que morreu e o povo que ainda vai nascer. Boa semana, queridos.

 

 

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