O imunologista Jacob Glanville deparou-se com reportagens em 2017 sobre um homem que havia se injetado centenas de vezes com o veneno de algumas das cobras mais mortais do mundo, incluindo naja, mamba e cascavel — e permitiu ser mordido.
“As notícias eram meio sensacionalistas. “Cara maluco é mordido por cobras””, disse Glanville. “Mas quando olhei, percebi que havia um diamente bruto ali.”
A joia de Glanville era Tim Friede, um especialista autodidata em serpentes baseado na Califórnia que se expôs ao veneno de cobras ao longo de quase 18 anos, efetivamente ganhando imunidade a várias neurotoxinas.
“Tivemos essa conversa. E eu disse, sei que é estranho, mas estou muito interessado em examinar um pouco do seu sangue”, relembrou Glanville. “E ele respondeu: “Finalmente, estava esperando por essa ligação.””
A dupla concordou em trabalhar junto, e Friede doou uma amostra de 40 mililitros de sangue para Glanville e seus colegas. Oito anos depois, Glanville e Peter Kwong, professor Richard J. Stock de ciências médicas da Faculdade de Médicos e Cirurgiões Vagelos da Universidade Columbia, publicaram detalhes de um soro antiofídico que pode proteger contra mordidas de 19 espécies de cobras venenosas — pelo menos em camundongos — baseado em anticorpos do sangue de Friede e um medicamento bloqueador de veneno.
“Tim, pelo que sei, tem um histórico sem paralelos. Foram diferentes espécies muito diversas de todos os continentes que têm cobras, e… ele ficou alternando entre os venenos ao longo de 17 anos e nove meses, mantendo registros meticulosos durante todo o tempo”, disse Glanville.
“No entanto, desencorajamos fortemente qualquer pessoa a tentar fazer o que Tim fez”, acrescentou Glanville. “Veneno de cobra é perigoso.”
Friede parou de se imunizar com veneno de cobra em 2018 após algumas situações críticas, e agora está empregado na empresa de biotecnologia Centivax de Glanville, onde Glanville é CEO e presidente. A pesquisa foi publicada sexta-feira na revista científica Cell. A CNN contatou Friede, mas ele não respondeu ao pedido de entrevista.
O que fazer em caso de picada de cobra
Se você tiver o azar de ser mordido por uma cobra venenosa, sua melhor esperança é um soro antiofídico, que em sua maior parte tem sido produzido da mesma forma desde a era vitoriana. Tradicionalmente, o processo envolve extrair veneno de cobra manualmente e injetá-lo em cavalos ou outros animais em pequenas doses para provocar uma resposta imune. O sangue do animal é coletado e purificado para obter anticorpos que agem contra o veneno.
Produzir antiveneno dessa forma pode ser complicado, sem mencionar perigoso. O processo é propenso a erros e trabalhoso, e o soro acabado pode resultar em sérios efeitos colaterais. Especialistas há muito tempo pedem melhores formas de tratar picadas de cobra, que matam cerca de 200 pessoas por dia, principalmente no mundo em desenvolvimento, e deixam 400.000 pessoas por ano com deficiências. A Organização Mundial da Saúde adicionou a picada de cobra à sua lista de doenças tropicais negligenciadas em 2017.
Glanville, que cresceu na Guatemala rural, disse que sempre esteve ciente dos problemas de saúde causados por picadas de cobra e imediatamente reconheceu que a experiência de Friede apresentava uma oportunidade única. Expondo-se ao veneno de cobras por quase duas décadas, através de injeções e permitindo ser mordido, Friede havia gerado anticorpos que eram eficazes contra várias neurotoxinas de cobra ao mesmo tempo.
Potencial “revolucionário”
Os pesquisadores isolaram anticorpos do sangue de Friede que reagiam com neurotoxinas encontradas nas 19 espécies de cobra testadas no estudo, que incluíam cobras-coral, mambas, najas, taipans, kraits e outras.
Esses anticorpos foram então testados um por um em camundongos envenenados por cada uma das 19 espécies, permitindo aos cientistas entender sistematicamente o número mínimo de componentes que neutralizariam todos os venenos.
O coquetel de medicamentos criado pela equipe incluiu três componentes: dois anticorpos isolados de Friede e o medicamento de molécula pequena varespladib, que inibe uma enzima presente em 95% de todas as picadas de cobra. O medicamento está atualmente em testes clínicos em humanos como tratamento independente.
O primeiro anticorpo, conhecido como LNX-D09, protegeu camundongos de uma dose letal de veneno completo de seis espécies de cobra. A adição do varespladib garantiu proteção contra três espécies adicionais. Por fim, os pesquisadores adicionaram um segundo anticorpo isolado do sangue de Friede, chamado SNX-B03, que estendeu a proteção para 19 espécies. O antiveneno ofereceu 100% de proteção aos camundongos contra o veneno de 13 espécies e proteção parcial (20% a 40%) para as seis restantes, observaram os pesquisadores no estudo.
Steven Hall, farmacologista especializado em picadas de cobra da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, chamou isso de “uma maneira muito inteligente e criativa” de desenvolver um antiveneno. Hall não participou da pesquisa. E embora o coquetel não tenha sido testado em humanos, caso seja aprovado para uso clínico, Hall disse que a origem humana dos anticorpos provavelmente significaria menos efeitos colaterais do que antivenenos feitos da maneira tradicional usando cavalos ou outros animais, que frequentemente podem resultar em reações alérgicas.
“É impressionante pelo fato de ser feito com um ou dois anticorpos, mais um medicamento de molécula pequena, e isso aumenta o número de espécies, versus um antídoto regular. E acho que faz um bom trabalho em destacar a utilidade potencial de combinar um medicamento de molécula pequena com um anticorpo”, acrescentou Hall.
“Se chegar à clínica, chegar às pessoas a longo prazo, seria revolucionário. Isso realmente mudaria completamente o campo em termos de tratamento de picadas de cobra”, disse ele.
Kwong, da Columbia, disse que a pesquisa publicada focou em uma classe de cobras conhecidas como elapídeos. Não incluiu viperídeos, o outro grande grupo de cobras venenosas que inclui cascavéis, víboras-de-escama-serrada e espécies adicionais. No entanto, a equipe está investigando se anticorpos adicionais identificados no sangue de Friede ou outros agentes podem oferecer proteção contra esta família de cobras viperídeas.
“O produto final contemplado seria um único coquetel pan-antiveneno ou potencialmente faríamos dois: um para os elapídeos e outro para os viperídeos, porque algumas áreas do mundo têm apenas um ou outro”, disse Kwong.
A equipe também quer iniciar pesquisas de campo na Austrália, onde existem apenas cobras elapídeas, permitindo que veterinários usem o antiveneno em cães mordidos por cobras.
Por: CNN Brasil