No coração da Amazônia Ocidental, entre rios escuros e o mar de florestas, emerge o trabalho científico de grande relevância à parasitologia contemporânea. Assegurado pela potência da educação pública, o estudo revelou três novas espécies de parasitos que habitam um peixe muito consumido na região: o Ageneiosus inermes, popularmente conhecido como mandubé.
A pesquisa, publicada em dezembro de 2024 em uma revista científica internacional, foi conduzida ao longo do ano pela professora Dra. Williane Maria de Oliveira Martins, do Instituto Federal do Acre, juntamente com as pesquisadoras Drª Simone Chinicz Cohen e Drª. Márcia Cristina Nascimento Justo, em parceria com o Laboratório de Helmintos Parasitos de Peixes da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, no Rio de Janeiro. O estudo, portanto, descreve as espécies Demidospermus juruaensis, Demidospermus bifurcatus e Demidospermus takemotoi, até então desconhecidas pela comunidade científica.
“Esses parasitos foram identificados com base em características morfológicas únicas. Não havia registro de nada semelhante entre as espécies já conhecidas do gênero Demidospermus. A Amazônia continua nos revelando que o que já conhecemos é apenas uma fração do que ela guarda”, afirma a professora Williane.
Pesquisa solidificada em águas acreanas
Os peixes analisados foram coletados nos rios Juruá e Moa, no município de Cruzeiro do Sul, localizado ao extremo oeste do Brasil, quase na fronteira com o Peru; o que explica a escolha do local para o desenvolvimento da pesquisa: a região condensa uma das maiores diversidades ictiológicas do planeta, e abriga espécies endêmicas que coexistem com as populações ribeirinhas que dependem delas para alimentação, comercialização e sobrevivência.
A pesquisa é parte do projeto “Biodiversidade de parasitos de peixes do estado do Acre”, coordenado pela professora Williane, e tem o objetivo de catalogar parasitos presentes em peixes de diversos rios do estado, no Alto Acre e no Baixo Acre. A ideia é ambiciosa e urgente. Do total de espécies parasitárias de água doce existentes, menos de 3% foram descritas até a atualidade. E grande parte do que ainda está por descobrir encontra-se na Amazônia.
“É preciso conhecer para preservar. Os parasitos muitas vezes são estigmatizados, mas têm papel ecológico fundamental. Funcionam como bioindicadores da saúde dos ecossistemas aquáticos, e é essencial conhecer sua presença e variações para compreendermos as mudanças ambientais, os impactos da poluição e até os efeitos das mudanças climáticas na região”, explica a pesquisadora.
Jovens cientistas na prática
Além do impacto científico, o estudo tem uma função igualmente ousada: proporcionar aos jovens amazônicos a vivência completa do ofício científico. Alunos do Ifac participaram ativamente de todas as etapas da pesquisa, desde as coletas nos rios até o processamento do material no laboratório.
“O Instituto Federal do Acre não se limita à sala de aula. Aqui, ensino, pesquisa e extensão caminham juntos. Nossos estudantes vivem o processo científico na prática: coletam, escrevem artigos, apresentam trabalhos. Isso muda o futuro dessas pessoas”, diz Williane.
A estrutura usada no Acre é resultado de um convênio entre o Ifac e a Fiocruz, que capacitou mais de 20 doutores na região. Um desses frutos é o Laboratório de Biodiversidade do Ifac, instalado em Rio Branco, no Campus Baixada do Sol, onde boa parte das análises da pesquisa foi realizada.

Risco zero para humanos, impacto real na piscicultura
Os parasitos descobertos habitam as brânquias dos peixes, estruturas responsáveis pela respiração. Apesar de não apresentarem risco de transmissão para humanos por não serem encontrados na musculatura do peixe, os parasitos podem causar danos à piscicultura, principalmente em sistemas de cultivo intensivo.
“Em infestações severas, esses organismos podem levar o peixe à morte, comprometendo a produção e gerando perdas econômicas significativas para o piscicultor. Em cativeiro, o desequilíbrio favorece a proliferação desses parasitos”, alerta Williane.
Por precaução, recomenda-se o consumo do pescado sempre bem cozido, assado ou frito. O aquecimento é suficiente para inativar possíveis formas larvais de outras espécies parasitárias.
A Amazônia é o pulso
A Amazônia abriga 13% da água doce do mundo e mais de 2.500 espécies de peixes já descritas, mas esses números são a primeira camada de desdobramentos muito mais complexos e até desconhecidos. A pesquisa conduzida por Williane e sua equipe é um lembrete de que há um ecossistema sob as águas amazônicas que ainda precisa ser compreendido.
E para além da pesquisa de laboratório, trata-se de um projeto de território. É a ciência interiorizada no bioma, elaborada por quem conhece e vive o pulso da floresta e dos rios. Ciência pública, produzida com recursos limitados, no entanto, voltada à preservação da Amazônia, ao compromisso com o conhecimento e à formação cidadã dos que nela vivem.
“Nosso trabalho não é só sobre parasitos. É sobre ecossistemas, soberania e formação científica para que possamos continuar estudando, defendendo e existindo nesse lugar”, conclui a professora Williane.
Por: Ifac