“Um amigo me dizia ontem ao telefone que se espantou com o espanto de um outro amigo com quem também conversou ontem ao telefone enquanto falavam sobre o avanço das IAs”. Ouvi no elevador do consultório agorinha. Eram duas mulheres de blazer azul marinho que subiram até o nono andar. Uma diz para a outra: “Bora lá, o amigo é seu ex-marido – a quem você não gosta de chamar de ex-marido e por isso diz amigo, embora às vezes tenha dúvidas de se pode (ou deve, ou quer) chamá-lo de amigo, ou ainda pior, de um amigo – lhe dizia ontem numa troca de áudios –porque você não fala ao telefone em tempo real (principalmente se com seu ex-marido, com quem se sente cada vez menos confortável de dividir um pronome possessivo e portanto talvez seja mais adequado dizer “o pai de meu filho”) – que um amigo – que desconfio que seja somente um conhecido e me pergunto por que essa mania dele de usar o título de amigo com quem não contaria pra lhe acompanhar nem em um exame – o espantou – era uma fofoca embrulhada com a sensação de espanto/indignação, mas devem ter rido e falado mal do sujeito juntos (e aqui de novo: por que rir ou fofocar com este um “amigo”?) – ao dizer de seu espanto – estava com medo e se sentindo inútil, ameaçado e pouco charmoso – com o avanços as IAs. É isso Juliana?”
Subi, eu sim, espantada com a amiga de Juliana. Que tal assim: Em uma troca de áudios, alguém com quem Juliana teve um vínculo mencionou que um conhecido se mostrou impactado com uns efeitos do avanço das inteligências artificiais. Foi uma IA quem me escreveu esta versão. Obrigada. Embora eu tenha pedido pra cuidar de imprecisões e repetições e, 4 tentativas depois, me mandou uma frase de 26 palavras com 4 artigos indefinidos. Os dois primeiros e o último, inúteis. De nada.
Presta? Mais ou menos. Dá pra entender? Dá. Mas subtraem-se informações mais importantes, fofocáveis e até risíveis do que a do espanto e da ameaça que, além de não serem novidade, nos são comuns a todos.
Abri a porta da sala e li o comunicado do fim de um casamento longevo nas redes sociais enquanto esperava a primeira sessão do dia. Ex-marido e ex-esposa deram seus depoimentos um sobre o outro e ambos sobre o fim do casal juntos. O dela tinha 256 palavras, desistências dela e resistências dele, um verso de Eduardo e Mônica e um de Sonhos (o mais bonito de Sonhos) do Caetano. O dele tinha 91, o verbo amar conjugado no passado duas vezes e nenhum verso. Gosto muito do trabalho de ambos e torço para que sejam os dois felizes no presente e no futuro. Nem precisava comunicar, mas claro, cada casal decide se e como tornar público tanto o começo como o fim de uma relação. Enfim, os textos prestam e dão pra entender. Tudo isso pra dividir com vocês essa dúvida: será que a IA tem gênero? Sei lá. Boa semana, queridos – pra vocês e pra Juliana.