“Conheci um caminhoneiro onde eu trabalhava e, entre dois ou três meses de casamento, abandonei tudo: minha família, minha mãe, minhas irmãs. Fui morar dentro de um caminhão por quatro anos”. Este é o relato de Patrícia* ao recordar, ao portal A GAZETA, o início de um relacionamento que se transformaria em um pesadelo. A história dela é semelhante a de 4.440 mulheres vítimas de violência doméstica que pediram medidas protetivas, em 2024, no Acre, segundo dados divulgados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Ela é uma das mais de cinco mil mulheres que foram assistidas, entre janeiro e agosto de 2025, pela Secretaria de Estado da Mulher (Semulher).
Patrícia, além da distância física da família, teve que enfrentar violências doméstica e psicológicas. “Ele fazia questão de que eu não me achasse bonita. Falava do meu cabelo, das minhas roupas, dos brincos que eu usava. Eu não percebia que era um relacionamento abusivo, achava que ele só queria mudar minhas vestes, mas era para me controlar, me destruir”.
Não bastasse todo o sofrimento ocasionado por um relacionamento tóxico e abusivo, Patrícia descobriu que teria que conviver com uma doença que ainda enfrenta muitos estigmas: ela havia sido infectada pelo HIV ao ter relações sexuais com o parceiro. O agressor sabia que convivia com o vírus e não a informou.
“Eu queria morrer, queria pular daquele caminhão e me jogar da ponte. Eu achei que não sairia viva dessa situação”, lembrou. “Foi quando eu entendi que tinha dependência emocional. Eu fechava meus olhos para tudo o que ele me fazia”.

“No início, era perfeito”
Manuela* também é uma sobrevivente, mas viveu uma situação semelhante em outro contexto. “No início, tudo parecia bem, mas, depois, começaram os ciúmes excessivos, o controle sobre cada passo meu. Eu não podia usar batom, perfume, trabalhar. Quando minha filha nasceu, eu já me sentia sufocada. O psicológico e as cicatrizes emocionais ficaram para sempre”, desabafou.
As humilhações não acabavam. Segundo Manuela, era ela quem sustentava o marido, em Portugal, onde moravam. “Era o meu salário que sustentava a família inteira. Quando viemos para o Brasil, a única coisa que ele colocou dentro de casa foi uma geladeira, e pagou apenas uma parte. Ele é um português, e tinha de voltar para o país de origem. Até isso fiz: eu que comprei a passagem para ele ir embora, e foi quando consegui me livrar”.
Manuela relatou que o ex-marido era tão cruel que, apesar de aparentar ter ciúmes, diminuía sua autoestima. Quando moravam em Portugal, ela trabalhava em um restaurante pequeno; por ser uma mulher que, à época, era obesa, Manuela era proibida pelo ex-parceiro até de trabalhar nestes lugares. “Ele dizia que, por ser obesa e pelo espaço ser estreito, eu vivia me “roçando” em outros homens”, explicou, acrescentando ainda que mal mantinha relação com os familiares. “Eu não conseguia sequer pensar por mim”.
Hoje, divorciada e com uma medida protetiva, Manuela agradece o fato de o marido estar longe. “Hoje, ele mora em Portugal. Nossas filhas não querem contato com ele, mas eu digo a elas que elas precisam perdoar e ajudá-lo, é o pai delas”, disse.

Ciclo da violência
Segundo Luzivera Batista, psicóloga da Semulher, a violência doméstica segue um padrão conhecido como ciclo da violência: “Temos três fases. A primeira é a fase da tensão, quando começam discussões e xingamentos, geralmente com violência psicológica. A segunda é a fase da explosão, quando acontecem agressões físicas. A terceira é a fase da ‘lua de mel’, quando o agressor pede perdão, promete que não vai repetir os atos e, em alguns casos, traz flores. Esse ciclo se repete até a vítima conseguir romper com a situação”, esclareceu.

Isto, segundo a psicóloga, explica o motivo de a mulher seguir em um relacionamento mesmo vivenciando situações degradantes, já que o agressor não é agressivo o tempo todo.
“É uma pena quando se escuta que mulher gosta de apanhar. Nenhuma gosta. O que vemos é o machismo prevalecendo, e a violência se manifesta de forma física, psicológica, patrimonial e moral”, reforçou Luzivera. Ela exemplificou a violência patrimonial: “Um agressor pode quebrar um celular que a mulher pagou por meses. Ele a mantém sob controle, impedindo-a de sair ou trabalhar. Isso pode ser uma violência patrimonial. Mas há muitas outras, que podem destruir com a vida de uma mulher”.
Dependência financeira
Segundo a assistente social da Semulher Mircleide Mota, há um problema corriqueiro, que faz com que as mulheres permaneçam em um relacionamento violento: a dependência financeira. “Muitas precisam dos companheiros no que diz respeito ao dinheiro, à sobrevivência, e têm medo da separação. Aqui [na Semulher], conversamos, observamos a situação familiar e socioeconômica, e fazemos encaminhamentos para instituições como o Cras [Centro de Referência em Assistência Social], Casa Rosa Mulher ou abrigo Mãe da Mata, que são lugares especializados no acolhimento destas vítimas. Quando vemos que a situação da mulher melhora, que ela sai daqui sorrindo, agradecendo, sentimos que nosso trabalho valeu a pena”.
Por conta disso, atualmente, a pasta oferta qualificações para as mulheres que ainda não têm uma profissão, de modo que elas consigam se sustentar. “Ofertamos cursos de culinária, corte e costura, costumização de roupas. O que queremos é tirar a mulher do contexto de violência”, ressaltou a assistente social.
A pasta apoia as mulheres seja por meio dos cursos profissionalizantes ou por acolhimento, na tentativa de sair do contexto da violência. O objetivo da Semulher é atuar de forma contínua, com programas e projetos instituídos ou por intensificação dos serviço, como o Bloco do Respeito, no Carnaval; o Mês da Mulher, com ações ao longo de todo o março, a Quinzena da Mulher Negra, o Agosto Lilás, e os 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher.

De acordo com a secretária da Mulher do Acre, Márdhia El-Shawwa Pereira, apesar de ainda ter muito a se fazer quando se fala em violência contra a mulher no Estado, a cada dia, o Acre dá mais um passo. “Temos tentado caminhar para mais perto da realidade que desejamos, em que as taxas do feminicídio sejam zeradas. Os números mostram que o fortalecimento das políticas públicas voltadas às mulheres tem efeito direto na proteção de vidas. Continuaremos firmes para que esse crime deixe de existir”, destacou. Ainda segundo Márdhia, os números também têm crescido porque as mulheres conseguem denunciar com mais facilidade. “Elas tomaram coragem e então denunciando os agressores. Antes, existiam muitos casos que sequer eram notificados. Com a denúncia, o Estado é capaz de agir de forma mais efetiva”.
Márdhia relembrou que a Semulher oferece atendimento multidisciplinar, com psicólogas, assistentes sociais e assessoria jurídica. “Nosso objetivo é oferecer escuta qualificada, direcionamentos para outras instituições quando necessário, e acompanhamento que pode chegar a seis sessões, nos casos mais graves. É uma oportunidade de reconstrução e de começar uma nova vida”.
Pacto contra a violência de gênero
Ainda em agosto de 2024, órgãos públicos assinaram um pacto para combater a violência contra a mulher com um objetivo único: chegar ao número de zero feminícidios. O Pacto Estadual de Prevenção aos Feminicídios, instituído pelo decreto nº11.515, foi publicado na edição do Diário Oficial do Estado (DOE) do dia 12 de julho.
O crime de feminicídio é tipificado quando há um assassinato de uma mulher, motivado por violência doméstica, por menosprezo ou por discriminação à condição feminina. A ideia do pacto em conjunto é prevenir as mortes violentas de mulheres em razão da desigualdade de gênero, garantindo os direitos e o acesso à justiça às mulheres em situação de violência e aos seus familiares.
Qualificação para todas
A autonomia financeira feminina é um dos pilares da Secretaria da Mulher e, para tal, o governo do Acre destinou inicialmente, em 2024, mais de R$ 97,8 milhões para políticas públicas voltadas às mulheres; o valor atualizado, no entanto, alcançou R$ 171,1 milhões, um crescimento de 74,87% em relação ao ano anterior. O montante é destinado a cursos profissionalizantes como – por exemplo – os oferecidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), por meio de programas como o Impacta Mulher.

O projeto começou em 2023 e já percorreu todos os municípios do Estado, alcançando – apenas em qualificações – mais de 800 mulheres em situação de vulnerabilidade, com cursos como corte de cabelo, preparo de bolos, pizzas e hambúrgueres e customização de roupas e sandálias, com foco na geração de renda e empreendedorismo.
Este é um objetivo do governador do Acre, Gladson Camelí, que disse acreditar na necessidade em dedicar atenção para implementação de ações que acabem com a violência de gênero. “E que terminem, definitivamente, com o feminicídio e todo e qualquer tipo de discriminação contra as mulheres do nosso estado. Entendo que o feminicídio deve ser combatido com todas as armas”.
Violência em números
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontam que as tentativas de homicídio contra mulheres no Acre tiveram aumento significativo, passando de 63 casos, em 2023, para 88, em 2024, o que representa uma alta de quase 40%. Isso significa que, em 2024, a cada 100 mil mulheres, 20,1 sofreram alguma tentativa de assassinato, ante 14,4 em 2023.
Em 2025, os números também são alarmantes: de acordo com o Núcleo de Apoio Técnico (NAT) do Ministério Público do Acre (MPAC), 3.544 crimes de violência doméstica foram praticados apenas nos primeiros sete meses de 2025. Quando se fala de feminicídios, os dados também assustam: foram sete mulheres mortas, duas apenas em agosto.
De 13 mulheres vítimas de mortes violentas intencionais em 2024, oito foram assassinadas por motivo de gênero — uma redução em relação a 2023, quando 10 das 15 mulheres vítimas de homicídio morreram pelo mesmo motivo, segundo dados do MPAC.
Além disso, ainda nos primeiros sete meses do ano, o Acre registrou 1.258 denúncias de violência contra a mulher no Ligue 180. O dado é o terceiro maior da região Norte em termos absolutos, perdendo apenas para o Pará (1.655) e Amazonas (1.571). Proporcionalmente, no entanto, o estado lidera com folga o ranking regional, com mais de 300 denúncias por grupo de 100 mil mulheres – para se ter ideia, no Amazonas esse índice é de menos de 80.
Outros números, divulgados pela Assembleia Legislativa do Acre (Aleac) no começo de agosto, assustam: mais de 30% das mulheres acreanas sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar provocada por homens. Os dados são de pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, referentes ao ano de 2024.
O levantamento afirma também que 25% dessas vítimas relataram ter sofrido agressões em 2024. As formas de violência mais citadas foram psicológica, física e moral.
A quantidade de chamadas ao número de emergência 190 por violência doméstica também cresceu no Estado em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O levantamento apontou ainda que o estado registrou 19.603 chamadas com essa natureza no último ano, frente a 17.284 em 2023, uma alta de 12,9%.
Mulheres que transformam
A vice-governadora Mailza Assis também defendeu o fortalecimento do protagonismo feminino no empreendedorismo como estratégia para impulsionar a economia do Acre. Durante o lançamento do projeto “Mulheres que transformam”, em março deste ano, ela destacou a relevância da iniciativa para ampliar a participação das mulheres no mercado de trabalho.

“Este projeto é um passo importante para criar um ambiente que favoreça a autonomia e o sucesso das mulheres empreendedoras em nosso estado. Com o apoio das instituições parceiras vamos levar essa ideia aos 22 municípios, destacando negócios liderados por mulheres e promovendo o consumo de produtos e serviços locais”, afirmou Mailza.
De acordo com a vice-governadora, a proposta também busca valorizar a contribuição feminina para o desenvolvimento econômico regional. “Além de elevar a presença feminina no mercado, o projeto vai fomentar a independência financeira e o empoderamento das mulheres acreanas”, acrescentou.
Visita da ministra da Mulher
Ainda em julho deste ano, Camelí recebeu a ministra da Mulher, Márcia Lopes, no Palácio Rio Branco e, na ocasião, reafirmou o compromisso do Governo do Acre com políticas públicas voltadas para as mulheres. Durante o encontro, o governador destacou a presença feminina em cargos estratégicos e a importância de dar voz e espaço às mulheres no desenvolvimento social e econômico do estado.
“Nas principais pastas, temos mulheres guerreiras que estão fazendo um grande trabalho e quem diz não é o governador Gladson Camelí, são as pesquisas de aprovação das secretarias nas quais vocês, mulheres, ocupam os cargos”, explanou o gestor.

Márcia Lopes elogiou a atuação do Acre e ressaltou o papel das conferências estaduais e municipais como instrumentos de diálogo e construção coletiva de políticas públicas para mulheres. “Depois de 10 anos sem conferência, nós realizaremos a 5ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres e, antecedendo essa conferência, as conferências municipais e estaduais. Fiquei muito feliz hoje, viu, governador? Porque o Acre é um dos estados que vai realizar a conferência em todos os municípios, nos 22 municípios”.
Além de citar os programas governamentais de prevenção à violência contra a mulher e de capacitação profissional, Camelí destacou a parceria com o governo federal na criação de centros de referência e no fortalecimento de políticas públicas. “Aproveitando a oportunidade de reafirmar o nosso compromisso do governo do Estado com as políticas voltadas para as mulheres. Um bom homem, ele cuida das mulheres”, completou o governador.
Recursos e iniciativas
O Acre recebeu mais de R$ 44 milhões do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), segundo informações do governo do Acre. Além disso, em março de 2025, uma parceria entre governo do estado, por meio do SEASDH, e o Instituto Federal do Acre (Ifac), destinou R$ 1,1 milhão para programas de inclusão social para mulheres em situação de vulnerabilidade. Em março, por exemplo, a instituição abriu 300 vagas para mulheres em vulnerabilidade social e econômica, com cursos para cuidadora de idosos, cuidadora infantil e trabalhadora doméstica, por meio do programa Mulheres Mil.
Ainda em agosto deste ano, o Acre alterou a lei que cria a Política Estadual de Proteção e Atenção Integral aos Órfãos e Órfãs de Feminicídio, garantindo atenção especial a essa população.
Uma das últimas ações pelas mulheres foi enfatizada ainda em outubro: O Ministério das Mulheres e o governo do Acre assinaram a ordem de serviço para a construção da Casa da Mulher Brasileira (CMB) e do Centro de Referência da Mulher Brasileira (CRMB), em Rio Branco (AC). Esta será a mais uma unidade, sendo os Centros de Referência da Mulher Brasileira em Cruzeiro do Sul e Epitaciolândia, inaugurados em janeiro e maio deste ano, respectivamente.
O equipamento integra o Programa Mulher Viver sem Violência, que tem como objetivo ampliar e articular os serviços especializados de atendimento às mulheres em situação de violência. A iniciativa busca agilizar os atendimentos e fortalecer a rede de proteção, assegurando maior efetividade no enfrentamento à violência de gênero.

Liberdade
Patrícia conseguiu romper o ciclo da violência. “Eu denunciei, me libertei do controle dele, comecei meu tratamento [para o vírus HIV], respirei de novo. Hoje, com apoio da minha mãe e das minhas irmãs, estou reconstruindo minha vida”, diz, acrescentando ainda estar vivendo um dos momentos mais bonitos: o nascimento do filho, hoje com três meses, e negativado para a doença. “Vivo em carga indetectável, com uma vida normal, inclusive, com um bebê que é a razão da minha vida e casada com uma pessoa que me ama”, falou, emocionada.
Manuela, por sua vez, lembrou da importância da família e do suporte psicológico. “Minha irmã deu um basta quando eu não conseguia. Ela dormia com uma faca de carne embaixo do travesseiro, caso ele tentasse algo. Eu percebi que não estava sozinha, e que podia me libertar do medo”, contou.
No Brasil, quatro mulheres morrem por dia apenas por serem mulheres, segundo dados do Mapa da Violência 2025. Mesmo diante de tanto sofrimento, Patrícia e Manuela mostraram que é possível romper o ciclo da violência e reconstruir a própria vida. São histórias que revelam que a coragem de denunciar, somada ao apoio da família, de amigos e de políticas públicas, pode transformar dor em força e medo em liberdade.
“Hoje eu respiro sem medo, vivo pelo meu filho e por mim mesma. Descobri que sobreviver não é apenas existir, é viver de verdade, e que cada passo rumo à liberdade vale cada lágrima do passado”, afirmou Patrícia.
Se você sofre ou conhece alguém que sofre violência doméstica, denuncie. Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher). Em situação de emergência, acione o 190.
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* Nomes fictícios para resguardar a identidade das vítimas