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Fofoca: hábito pode fortalecer laços entre casais, sugere estudo

Fofoca: hábito pode fortalecer laços entre casais, sugere estudo

Freerange Stock/Divulgação

Na teoria, ninguém admite; na prática, todo mundo faz. A fofoca, comum nas relações humanas há milhares de anos (veja quadro), costuma ser associada a algo negativo, mas estudos revelam que há um lado bom no mexerico do dia a dia. Uma nova pesquisa publicada no Journal of Social and Personal Relationships sugere, inclusive, que casais que costumam futricar entre si — sobre amigos, colegas ou conhecidos — relatam níveis mais altos de felicidade e de qualidade no relacionamento.

Para escapar das limitações dos questionários, que dependem da memória ou da franqueza dos participantes, os cientistas recorreram a um dispositivo chamado Electronically Activated Recorder (EAR). O aparelho registra amostras sonoras curtas do ambiente ao longo do dia, permitindo flagrar conversas cotidianas sem interferência direta do pesquisador.

Durante dois fins de semana, 76 casais em relacionamentos estáveis usaram o dispositivo. No total, foram gravados quase 99 mil trechos de áudio. Aproximadamente 12% dos arquivos continham fofoca e, em 9% dos casos, ela ocorria diretamente com o parceiro romântico. Segundo os autores, Chandler M. Spahr e Megan L. Robbins, da Universidade da Califórnia, em Riverside, esse é o primeiro estudo sobre o tema a usar conversas no ambiente natural, um método chamado observação naturalística, para analisar o hábito tanto em casais heterossexuais quanto naqueles do mesmo gênero.

Vergonha

O recurso permitiu observar o comportamento em condições normais, sem interferência dos cientistas. “As pessoas geralmente não percebem que estão fofocando ou têm vergonha de admitir. O método naturalístico nos deu uma janela rara para esse fenômeno no dia a dia”, explicou Spahr, em nota.

Os resultados mostraram que quanto mais os parceiros fofocavam entre si, maior era a probabilidade de reportarem felicidade pessoal. A associação com a qualidade do relacionamento também foi positiva, embora menos significativa. “Encontramos evidências preliminares de que a fofoca com o parceiro está ligada ao bem-estar individual. É como se compartilhar comentários sobre outras pessoas reforçasse a sensação de proximidade e cumplicidade”, afirma Robbins.

Em média, os participantes fofocaram cerca de 38 minutos por dia. Casais compostos por duas mulheres registraram os maiores índices, seguidos pelos constituídos por pessoas de gêneros diferentes. Os menos propensos a mexericar, de acordo com o estudo, foram parceiros do sexo masculino.

Alinhamento

A análise também mostrou que o efeito positivo da fofoca não variava segundo o gênero ou a composição do casal: tanto pares homoafetivos quanto heterossexuais se beneficiavam da prática. Os cientistas acreditam que o hábito pode fortalecer vínculos. A prática funciona como “uma forma de sinalizar alinhamento de valores e de criar a sensação de estar do mesmo lado”, argumentam.

“Quando um casal fofoca sobre conhecidos em comum, pode reforçar a ideia de que são uma equipe. Isso aumenta sentimentos de confiança, conexão e até divertimento compartilhado”, observa Spahr. Outra hipótese é de que a fofoca ajude na regulação social do relacionamento, permitindo alinhar expectativas e comportamentos a partir da observação da vida alheia. “Discutir como outras pessoas agem pode ajudar parceiros a negociar normas implícitas na própria relação”, destaca Robbins.

Catarse

Wanderson Neves, psicólogo do Grupo Mantevida, explica que a fofoca é uma estratégia favorável para gerenciar emoções intensas. “Ela pode atuar como um desabafo emocional — compartilhar frustrações em relação a outras pessoas pode reduzir a tensão interna, atuando como uma leve catarse”, diz. Além disso, o especialista destaca que a prática pode ajudar o casal a fortalecer a ajuda mútua, “o que é fundamental para a saúde mental”, diz.

Para a psicóloga e psicanalista Silvia Oliveira, de Brasília, quando feita sem malícia, “a fofoca pode ser uma forma de compartilhar experiências e criar proximidade — como no caso de histórias que circulam em grupos familiares ou comunitários e que reforçam tradições, valores e memórias coletivas”. “Em alguns contextos terapêuticos, conversar sobre o que é dito ou pensado sobre alguém pode ajudar na compreensão da própria identidade social e das relações interpessoais”, destaca.

Os autores observam, porém, que o estudo é preliminar. Além disso, os voluntários já relatavam, em média, altos índices de satisfação conjugal. “Precisamos verificar se os resultados se repetem em diferentes contextos culturais e socioeconômicos. Também queremos entender se certos tipos de fofoca — positiva, negativa, neutra — têm efeitos distintos na vida a dois”, explicou Spahr. Segundo o especialista, a pesquisa abre caminho para analisar se a fofoca pode ser usada como estratégia de comunicação intencional, ajudando casais a fortalecer seus vínculos e a aumentar a satisfação conjugal.

 

Construção de intimidade

 

De acordo com uma pesquisa da Universidade da Califórnia, em Riverside, casais que compartilham fofocas tendem a se sentir mais felizes e conectados emocionalmente. Há alguns mecanismos envolvidos, como validação mútua: ao compartilhar percepções sobre terceiros, os parceiros confirmam que têm visões semelhantes do mundo, reforçando a sensação de estar “na mesma equipe”. Também há a construção de intimidade: a fofoca proporciona um ambiente seguro para conversas privadas, reforçando a conexão e a confiança entre os parceiros. Além disso, o sentimento de exclusividade: ter consciência de que determinadas informações são divulgadas somente entre os dois intensifica a sensação de cumplicidade e pertencimento. Esses mecanismos estão em consonância com as teorias de autoexpansão, que propõem que relacionamentos saudáveis favorecem o desenvolvimento pessoal por meio da troca de vivências e pontos de vista. No entanto, é fundamental distinguir entre a fofoca reflexiva, que favorece o entendimento, e a fofoca maliciosa, que alimenta julgamentos e negatividade. De acordo com pesquisas sobre comunicação destrutiva, casais que mantêm padrões de críticas constantes têm um risco maior de separação. Quando empregada para reforçar esses padrões, a fofoca pode ser nociva.

Wanderson Neves, psicólogo do grupo Mantevida 

 

Três perguntas para

 

Paulo Henrique Roberto, psicanalista, professor no curso de Psicologia do Centro Universitário Uniceplac

A palavra fofoca costuma ter conotação negativa. Como a psicologia entende esse comportamento e por que ele pode, em certos contextos, ser benéfico?

A fofoca costuma ser vista de forma negativa, mas, do ponto de vista psicológico e sociológico, ela tem funções importantes para o agrupamento humano, visto que é um comportamento de comunicação social que tende a reforçar alianças, criar senso de pertencimento e aproximar pessoas que dividem percepções semelhantes. Em contrapartida, também facilita para esse grupo a compreensão de comportamentos inadequados. Ou seja, na fofoca, o grupo consegue sinalizar o que é aceitável ou não, promovendo certa coesão. Por outro lado, quando exagerada ou mal-intencionada, a fofoca pode gerar exclusão, conflitos e danos emocionais permanentes. Por isso, é útil pensar na intencionalidade do ato e no impacto do que se compartilha.

Como os papéis de gênero influenciam a fofoca entre um casal?

Acredito que não há uma diferença entre os gêneros quando se pensa na intensidade do ato de fofocar. Porém, há diferenças na forma como o mesmo ato é visto socialmente quando homens e mulheres fofocam. A mulher é tida como “fofoqueira”, e carrega uma conotação pejorativa. Há, também, uma concepção maliciosa e perniciosa, usada para deslegitimar a fala das mulheres, reduzindo seu discurso a algo não sério ou irrelevante. No entanto, quando os homens fofocam é tido como “networking”, “troca de informações” ou “conversa de bastidores”.

Quais outras formas de comunicação cotidiana cumprem papel semelhante ao da fofoca na manutenção do vínculo afetivo?

Há espaço para socializarmos informações nos diferentes grupos que participamos. Inclusive, é importante. Atribuímos e chamamos isso de “small talk”, que são essas conversas despretensiosas sobre os filmes que gostamos, os canais de Spotify que ouvimos, a vida dos cantores favoritos e das subcelebridades. Nisso cabe espaço para o riso fácil. Há também a troca por conselhos e confidências, o suporte sobre as causas dolorosas do amor. O apoio dos amigos, os pedidos de ajuda, o suporte quando algo não vai bem. Enfim, a fofoca é importante para inicializar os rituais de atualização sobre as narrativas do dia a dia. (PO)

 

Instrumento de poder

 

Muito antes de ser estudada em laboratórios de psicologia, a fofoca fazia parte da vida pública e privada das sociedades antigas. No mundo greco-romano, relatos de filósofos, poetas e historiadores mostram que falar sobre a vida alheia era visto, ao mesmo tempo, como vício moral e ferramenta política.

  • Mesopotâmia: era comum em cidades e mercados. Já foram encontradas tabuinhas em escrita cuneiforme com fofocas sobre casais, incluindo insinuações de adultério.
  • Grécia Antiga: nas ágoras, praças onde cidadãos se reuniam, rumores circulavam sobre líderes, vizinhos e rivais. Aristóteles e Platão criticavam a fofoca como discurso fútil, mas reconheciam que ela moldava reputações e podia servir de alerta moral.
  • Roma: as famae — boatos e comentários — tinham tanta força que o poeta Ovídio chegou a personificar a Fama como uma deusa, habitante de uma casa cheia de vozes. Para Cícero, os rumores eram armas políticas: podiam derrubar adversários no Senado.
  • Judaísmo e Cristianismo primitivo: a Bíblia hebraica condena o “maledicente” (Levítico 19:16), enquanto as cartas do Novo Testamento advertem contra “mexericos” dentro das comunidades cristãs. Ainda assim, os líderes religiosos usavam rumores para reforçar normas de conduta e punir desvios.
  • Idade Média: monges e pregadores herdaram essa ambivalência: a fofoca era pecado, mas também funcionava como meio de controle social dentro dos mosteiros e aldeias.

 

Prática pode favorecer a cooperação, mas há limites

 

Não é só entre casais que a fofoca pode fortalecer vínculos. Outros estudos, como um conduzido por pesquisadores da Universidade de Maryland e da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, sugerem que a prática pode ser benéfica em círculos sociais.

A pesquisa, publicada na Proceedings of the National Academy of Sciences e baseada em simulação computacional, afirma que o mexerico dissemina informações sobre a reputação das pessoas, podendo ajudar os destinatários dessas dicas a se conectarem com pessoas cooperativas e evitar as egoístas. “Supondo que as informações sejam honestas, isso pode ser muito útil”, diz Dana Nau, professora da Universidade de Maryland e coautora do estudo.

Para entender melhor as complexas teias da fofoca, os pesquisadores usaram um modelo da teoria dos jogos evolucionários que imita a tomada de decisão humana. Combinando com princípios da biologia evolutiva, os cientistas observaram que as pessoas são mais propensas a cooperar na presença de um fofoqueiro conhecido porque querem proteger sua própria reputação e evitar serem vítimas de boatos.

Regulação

“Do ponto de vista psicológico, a fofoca pode funcionar como um mecanismo de regulação social”, argumenta Silvia Oliveira, psicóloga e psicanalista de Brasília. “O medo de ter a própria imagem questionada faz com que as pessoas se preocupem em seguir regras, ser mais colaborativas e respeitar os limites do grupo. É como se a fofoca atuasse como uma ‘vigilância invisível’.”

Apesar dos benefícios sociais, porém, a especialista ressalta que a fofoca pode ser problemática, especialmente quando expõe e humilha as pessoas. “Em casos mais graves, o impacto pode comprometer a autoestima e a confiança nos relacionamentos, gerando isolamento”, diz. Especialmente na era das redes sociais, Silvia Oliveira alerta para os danos que os mexericos podem provocar. “O ambiente digital amplifica os efeitos da fofoca. Uma vez publicada, a informação pode se espalhar sem controle, alcançar pessoas desconhecidas e permanecer disponível por tempo indeterminado. Isso potencializa sentimentos de impotência, medo constante de julgamento e, em alguns casos, pode levar a quadros de ansiedade, depressão ou cyberbullying.”

Por Correio Braziliense

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